30.12.10

A LÍDIMA LUZ DA ÁGUA





A lídima luz da água
que se dá a beber

atribui à claridade
a insistência da sede.

Com seu vento a ajustar

o volume do mundo
à matriz do devir

a lídima luz da água
é o verbo inédito da fala.

J. Alberto de Oliveira

11.12.10

EM VERSO LIVRE





Deus escreve em cadernos
de folhas lisas.

Escreve magnificamente
em verso livre.

Deus escreve e não risca
nem as frases nem os versos

magnificamente ilegíveis.

J. Alberto de Oliveira

19.10.10

A JANELA DOS VENTOS




Com o pulso do fulgor
abro a janela

que dá para os ventos
que voam para longe.

Sejam corpo dela
os elementos

de só haver sonho
e o mar da barca bela.

J. Alberto de Oliveira

Photo: Ana Afonso

2.10.10

O OUTONO





Uma pausa absorta
de luz

rente ao sublime.

Aladas folhas
pairam em declive.

É o outono.

J. Alberto de Oliveira

Photo: J. A. de Oliveira

24.9.10

O DELICADO LENÇO





Frases e outros filamentos
de tangíveis lembranças

tecem de sol a sol

o delicado lenço
que me há-de cobrir a alma.


J. Alberto de Oliveira

3.8.10

UMA SÓ VEZ NA INFÂNCIA





Hoje lembrei-me de fugir
com um sonho de sete páginas em branco.


E fui sem dizer nada a ninguém.


Fugi para onde o tempo é um desenho livre.
Fui para o tempo de uma só vez na infância.

J. Alberto de Oliveira

16.7.10

POETICAMENTE





O poema que vou escrevendo irrompe nas folhas de rascunho como um ajuste de contas. Pela trama da emoção, pelo ritmo e rigor que lhe transmito, amadurece luzente e altivo.


O poema que vou escrevendo acontece à hora de vigília clandestina. Respira pela calada sensitiva do pensamento. Esquiva-se ao lápis da censura. Foge ao gume da tesoura inquiridora. Despista qualquer investigação policial.


Quero um poema que minta, ao ponto de se transfigurar em vórtice da verdade.


O poema é segredo e a estratégia. Sangra em silêncio e mistério.


No poema, sou mensageiro de mim ou de quê?
No poema que vou escrevendo, de quem é o desejo?

J. Alberto de Oliveira

12.7.10

UMA GOTA DE CHUVA





Na transparência do vidro
uma gota de chuva

é uma gota de vida só.

É tão minúsculo o abrigo
onde a luz

da alma inteira se recolhe.

J. Alberto de Oliveira


7.7.10

A LÍNGUA NO FOGO







Inteira e alumbrada ardia
nas frases sentidas que lia.

Com o gume cego dos ventos
ia pelo cristal da fala adentro.

Tangivelmente acendia
a língua no fogo de sete dias.


J. Alberto de Oliveira

1.6.10

VIANDANTES DA ALEGRIA





Vieram e bateram 
à porta

os enlameados
viandantes da alegria.

Mas ninguém
ninguém abriu a porta.

E seguiram caminho
por esse mundo fora

perdidos de alegria.


J. Alberto de Oliveira

Photo: Ana Afonso


11.5.10

DA ALMA TANGÍVEL




Acordo para ler
o primeiro sonho

da noite acesa
nos dedos do sono.

Acordo para ler

o furtivo jogo
da alma tangível

nos espelhos
musicais de Deus.

J. Alberto de Oliveira

18.3.10

MATÉRIA ILUMINANTE




Preciso de matéria iluminante
e sensitiva.


Matéria branca e amada
para tecer os lenços da fala.


Preciso de figuras
e lugares famintos de vida.

J. Alberto de Oliveira



Photo: Busto de António Nobre no Funchal

13.3.10

A SABEDORIA DO AVISO




E porque não entendia o sentido, insistiu na pergunta:
- A que te referes: aos porcos ou às pérolas?
- À sabedoria do aviso: não demos pérolas a porcos.
- Os porcos são animais imundos, comem tudo.
- As pérolas são indigestas e muito belas! - disse eu.
- Os porcos não gostam de pérolas?
- Calcam-nas aos pés com voluptuoso desdém.


E não entendia ou não queria entender o sentido.
Mas eu, mais tarde ou mais cedo, ainda hei-de trocar,
por um verso de pérolas, toda a metafísica do mar.


J. Alberto de Oliveira

16.2.10

ÍNDICE PERFEITO




Do alvor de sua voz
nascia o que pedia.

Nascia o índice perfeito
da alegria pura.

Por sete ou mais versos
de amor antigo no coração

pedia uma fatia de vida.

Pedia que lhe dessem
algumas sementes de trigo

para aquela cotovia
que adormecia na sua mão.

J. Alberto de Oliveira

4.1.10

LUMINOSAMENTE





Sob o lenço dos ventos
a vida e o tempo se abrem

doendo luminosamente.

O alvor renasce 
inflamando os segredos 

do sono sonhados
à luz do orvalho.

Dói luminosamente
quando a vida 

em sangue renasce 
da palavra mais atenta.

J. Alberto de Oliveira