28.12.18

CINCO REIS DE AMOR

                                                                                                                                                               Cantico del Sol - Joan Miró




A vida começa por um dedal
de amor coado.

Cinco reis de amor
faz bem a tudo.

O amor na casa.
O amor na rua.
O amor na praça.
O amor no cabo do mundo.

Um dedal de amor coado
faz bem a tudo.

J. Alberto de Oliveira

18.12.18

PARA LUANDINO VIEIRA

                                                                                                                  V. N. de Cerveira










PONTO DE VISTA

Conheço os anjos da guarda.
Pairam no mundo vigilantes, atentos ao que faço,
ao que penso e amo sentidamente.
Os meus anjos da guarda resplendem.
Com a lucidez de espírito, são eles que iluminam a bondade.
Os anjos da guarda ensinam a ver as veredas da liberdade.

J. Alberto de Oliveira



14.12.18

A TEORIA DE VER





Transmite-se a alma de ver
à refulgência de ir indo

pelas arestas do mundo.

Cheios de invisível poeira
da luz afectuosa

ou do sopro sonhado

os olhos em tudo procuram
o lídimo azul da intimidade.

J. Alberto de Oliveira

7.12.18

EXPERIÊNCIA E POEMA





Em conversa comigo
ainda soletro

resumidos versos.

São as inflexões verbais
que me servem

a vida e a sua voz.

Em conversa comigo
estou sempre à espera

da fala aproximativa.

À espera do puro 
sem demora 

ao rés de uma história.



J. Alberto de Oliveira

30.11.18

24.11.18

UM LIVRO BEM SELADO





Quando eu era menino
pela primavera
sabia sempre de um ninho.

Nunca lhe fazia mal
conforme requeria
a moral consolidada.

Agora sei de um livro
bem selado

para não haver fuga
de nenhuma palavra.

É um livro de silêncio
que salva quem

o abrir e ler em poema.

J. Alberto de Oliveira



14.11.18

A TELA SENSÍVEL





Romper a tela
sensível.

Romper a malha
e não ficar.

Rasgar a tela
e passar

através dela.

Romper o tecido
para chegar

ao manancial vivo.


J. Alberto de Oliveira

8.11.18

EM NOVEMBRO




Em Novembro
a desolada cor das folhas
sublinha a mágoa.

Aquela mágoa deixada
pelo silêncio
nas vozes sem regresso.

Em Novembro
parece que tudo se cala

num murmúrio cego.

J. Alberto de Oliveira

30.10.18

MANU SCRIPTA





O AMOR ESCRITO


A língua toda perfumada
no fogo da inocência

e a cor do céu bem medida
pela régua do pensamento

inspiravam o amor escrito.

Entre as varas de luz ditada
e sete riscos de vidro vivo

aprendi a ler cartas seladas.

J. Alberto de Oliveira








27.10.18

O NOME INFINITO




Diz-se dos mortos
que dormem no amor

de seus próprios olhos.

Diz-se que trocaram
o corpo pelo sono

e que seu íntimo sopro
é o nome infinito da paz

a que foram chamados.

J. Alberto de Oliveira

19.10.18

O MARINHEIRO NÃO MENTIA






Por sorte, encontrei um marinheiro
que me contou diversas visões e vivências.
Disse, por exemplo,
que já ninguém leva uma carta fechada
para ser lida no alto mar.
Que os segredos ficam todos em terra
num círculo de silêncio e tristeza até ao regresso.
Que o desejo de partir é igual ao desejo de voltar.
Que todos vão pobres
e todos voltam cheios de mistérios e perguntas.
Disse-me ainda que no alto mar
a cor do tempo umas vezes é salina e azul.
Outras vezes é de névoa profunda.
Que os movimentos da água
esboçam uma beleza antiga.

Pelo que que vim a saber num sonho
que tive

o marinheiro não mentia.

J. Alberto de Oliveira

11.10.18

ACIMA DO QUOTIDIANO




Perdi a lucidez e deixei o sono entrar.
Vi a água em forma de chuva a deslizar pelo seu corpo todo.
Nos movimentos não havia pressa nem temor.
A sua boca tinha a moldura e o tamanho de um segredo.
O lugar da casa parecia minúsculo e propício a não sei quê.
Com a leveza de folha no ar encheu um copo de água.
Sentou-se à minha beira enquanto durou a confidência.
Depois foi-se embora.
Saiu para dar de beber a uma estrela invisível. 
Eu fiquei para saber se ela era uma causa ou efeito da memória. 

J. Alberto de Oliveira


2.10.18

SÃO FRANCISCO DE ASSIS





Há momentos que me fazem pensar. Ao crepúsculo, por exemplo, o corpo, as formas e todas as imagens devagarosamente se perdem esbatidas.
A essa hora ninguém sabe se na alma há lucidez ou sono.
O crepúsculo, a prima hora noctis, convida à nudez.
A paisagem prepara o grande festim onde os seres têm lugar para uma pausa de mansidão.
Dá-se o encontro sem direito nem avesso.

A abertura ao desconhecido e aos segredos do anoitecer é uma vocação íntima.

S. Francisco de Assis morreu em 1226, ao entardecer do dia 3 de Outubro.
Com o seu próprio corpo quis sentir e medir a terra.
Com a nudez estrita se deitou nela.

J. Alberto de Oliveira
Imagem: Amadeo de Souza-Cardoso

24.9.18

A BILHA





Não sei desenhar rostos nem objectos,
apesar de a minha professora das coisas primeiras
nos ensinar a fazer cópias de uma bilha bojuda,
com formas e beleza da ternura.

Hoje, eu daria tudo para ver os meus primeiros exercícios de desenho.
Que me fizeram às cópias da bilha de barro?
Onde anda a bilha bojuda?
E o lápis? Perdeu-se pelos caminhos da escola?

Eu daria tudo para ter aquela bilha de barro e dela beber água pura.
Eu amo a bilha.
Amo-a tanto, que até sei que o amor se faz do mesmo barro 
da bilha que eu desenhava na minha escola antiga.

J. Aberto de Oliveira

18.9.18

UMA ARCA CHEIA





Uma arca cheia de pensamentos,
de enigmas e nomes,
de sinas e lembranças,
de versos à solta,
de rimas
e desassossego sem margens.

Era assim e mais que assim
a arca dos papéis de Fernando Pessoa.

J. Alberto de Oliveira

10.9.18

VERSO A VERSO





A luz de ‘screver o poema
faz-me lembrar

que há degraus para subir
e degraus para descer.





Verso a verso
o poema é breve

para chegar mais depressa.

J. Alberto de Oliveira

6.9.18

LUZ SENSÍVEL





Ando ainda longe de mim
e de quanto me falta escrever

com os olhos no tecto da vida.

À memória quero dar a beber
a luz sensível de Setembro.

Seus frutos maduros são todos
para oferecer 

à sarça ardente do outono.

J. Alberto de Oliveira

1.9.18

IMITAÇÃO DO SILÊNCIO





– Tão breves, os teus poemas!
– Sim, é verdade. Sou dado à imitação do silêncio.
Os meus poemas, tão pequenos, talvez sejam uma espécie 
de prelúdios musicais.
Nos versos cumpro o exercício do resumo.
Soletrar ou  dizer apenas é mais verdade que descrever.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: A. Papiès

24.8.18

MATÉRIA QUESTIONÁVEL





Por que é que o pensamento é tão parecido
com sete fios de sol?

O amor envenena tudo.
E por que é que às vezes também cura?

Escrever faz doer.
Porquê?

Onde lês o princípio de tudo?

A delicadeza sensitiva que os meus versos suscitam
é um estilo ou um exílio?

Quem sabe de que matéria são feitas a alegria e a dor?

De que horizonte vem o rosto?

J. Alberto de Oliveira

19.8.18

O MEU DESREINO





Não gosto de ser imitado
nem quero que se esbarrem escontra mim.
Prefiro ser ultrapassado. O que é difícil.
Mas a ter de ser,
seja pela esquerda e com aviso de folia.

É que o meu desreino
não é deste mundo.

Se fosse, eu já estaria na cadeia.

J. Alberto de Oliveira

13.8.18

MARIA GABRIELA LLANSOL





Maria Gabriela Llansol, nascida em 1931, escreveu uma prosa na confluência da poesia e do misticismo, atravessada por “cenas fulgor” que são momentos de intensidade fulminante. Ocupava-se de animais, de árvores e de linguagem.
No seu diário, Um Falcão no Punho, pode ler-se: “levo comida à gata preta, e vou-me embora. Regresso. Ela assusta-se, mas logo sossega. – Não é nada – falo-lhe. – É o nada que eu sou”.
Entre muitas figuras, Fernando Pessoa – o Aossê – é uma obsessiva presença auxiliar da sua inspiração.
Maria Gabriela, falecida em 2008, ensina-me a ser legente.

J. Alberto de Oliveira


2.8.18

A ÁGUA





A água vê o que não sei ver nem dizer.
Não tem horas nem forma própria.

Quando cai o sol
o mar esplende em alta nudez.

A água bebe a luz com os olhos da luz.
Na água se cala a fala do mundo.

J. Alberto de Oliveira

21.7.18

ROSA OU POEMA





Oh, a casa da minha criação!

A casa ardendo
em rosa perfeita.

Em rosa ou poema 
como se fosse um braseiro

com o fogo todo lá dentro.

J. Alberto de Oliveira

2.7.18

CAMÕES





Nesta língua que é a nossa.
Nesta língua de viajantes e aventureiros “por mares nunca de antes navegados” à procura de terras, povos e riqueza.
Nesta língua cheia de histórias contadas, desastres e soidade.
Nesta língua dos pobres que somos, há tesouros inexplicáveis como ENDECHAS A BÁRBARA ESCRAVA:

Aquela cativa
Que me tem cativo
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos
Que pera meus olhos
Fosse mais formosa.
   Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
   Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Preto os cabelos
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
   Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
   Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena,
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E pois nela vivo,
É força que viva.

O texto-poesia de Camões é de tal modo isento, livre, profundo e belo que, ouvir ou ler os académicos a falar dele, a gente estremece de pavor. Citando Herberto Helder,
“essa gente bárbara
que torna mínimo qualquer poema”,
diverte-se com os tesouros desta língua nossa e nobre.
Obrigado, Camões!
Firma-te nas delícias que te moviam e, como diz Herberto Helder, também “acautela a tua dor que se não torne académica”.
É bom que te rias dos sábios que não sabem ler os teus versos, porque usam e abusam do poder professoral.
Faltam-lhes a alma e a sensibilidade poéticas.
Obrigado, Camões!

J. Alberto de Oliveira

22.6.18

TALVEZ EU






Talvez eu seja ainda com a poesia
um recorte musical de água corredia.

J. Aberto de Oliveira

Desenho; José Rodrigues

18.6.18

EU MALANDRO





As realidades imaginadas são mais lembradas e seguras na memória que os acontecimentos do quotidiano.
Isto só para dizer que em menino eu era imaginativo.

A imaginação nasce do pensar, ver e sentir atentamente.
É um exercício interior.
Eu quase não mentia. As verdades eram minhas e saíam do mais íntimo de mim.

Quando eu era menino inventava peripécias e brinquedos, adivinhava o invisível, imaginava esferas nunca vistas.
A Mãe, sempre atenta, dizia: és um malandro e enganador.
Eu amava a ironia. Esse modo crescente da lucidez.
Eu era malandro.
E a mão que assim escreve ainda não treme.
Ela sabe que o branco foi dado
às horas mais brancas de haver infância.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Joan Miró


15.6.18

A REALEZA DO POEMA




Era de poucas linhas
e de tinta à míngua

a realeza do poema.

A língua
era do vento ardendo.

J. Alberto de Oliveira


Imagem: Maria Côrte-Real

7.6.18

CHARLES CHAPLIN





Charles Chaplin retratou deste modo a personagem Charlot:

“É um vagabundo e ao mesmo tempo um cavalheiro, um poeta, um sonhador, um solitário, sempre ansioso por idílios e aventuras. Gostaria que o tomassem por um sábio, um músico, um duque ou um jogador de pólo. Mas não desdenha de apanhar uma beata do chão, nem de furtar o chupa-chupa a um bebé. E, é claro, não perde a ocasião de dar um pontapé no traseiro de uma senhora... mas só quando está fulo!”

Charles Chaplin - Autobiografia

1.6.18

NA CURVA DO MUNDO




A lua que se atrasa
na curva do mundo

faz perguntas
a quem não passa.

A lua é cega
na curva do mundo.

A lua desassossega
as horas no escuro.

J. Alberto de Oliveira