26.6.06

O SILÊNCIO DA ACRÓPOLE



Quando entrei pela primeira vez na Capela Sistina o barulho era tanto que não podia ver. Bandos de turistas conduzidos por guias erravam num desvairo de babilónia. Falavam todos ao mesmo tempo nas suas diversas línguas, vozeavam como um enxame, e o alto movimento dos Ignudi perdia-se na sua desordem. Tudo estava desfocado.
Verdadeiramente não vi a Capela Sistina nessa primeira visita. Porque uma obra de arte tem de ser vista naquele vazio e naquele silêncio onde o artista se colocou para a criar. Tem de ser vista numa situação pura. Se para tantos homens a arte perdeu a significação, é porque antes disso eles perderam em si mesmos o seu próprio espaço interior, a disponibilidade vazia, a lisura do silêncio. Como turistas trazem consigo o seu barulho e a sua agitação opaca, que em tudo implantam, e não há guia, nem professor de estética, nem crítico de arte que os possa salvar da sua errância estéril.

O barulho da Capela Sistina doeu-me tanto mais porque ali me lembrei dos templos gregos, quebrados e arruinados, mas conservando inteiro o seu halo de silêncio.
Foi ao meio-dia que subi pela primeira vez à Acrópole. Um meio-dia frontal, um meio-dia total, sem uma falha. Mas atento e subtil, radioso de espanto. O sol poisava as suas mãos sobre os meus ombros. Subi as escadas e atravessei os Propileus. O silêncio reinava, inteiro, sagrado. Um silêncio incorruptível, que da voz da cigarra ou do rolar da pequena pedra solta sob o passo do homem fazia um elemento do silêncio.
Nenhuma descrição de viajante, nenhum livro de arte podia fazer prever este silêncio: só a experiência do nosso próprio tempo interior. E também os grandes planos de silêncio que suportam o discurso nas tragédias de Ésquilo. Ou o silêncio que na língua grega se cava entre as sílabas das palavras.
À direita o templo de Atena Niké avança como uma proa no espaço aberto e deslumbrado. No lado norte, no lugar mais sagrado da Acrópole, a forma desdobrada e dupla do Erectéion. Olho-o sentada num degrau do Partenon, rente a uma coluna. Do outro lado da coluna está sentada uma rapariga, calada e quieta e atenta.
Meio-dia frontal, quase sem nenhuma sombra. As sombras recuavam sob a raiz das colunas. A nudez brilhava, interior ao branco. O ar era ágil e grave. Veemência e solenidade, paixão e repouso.
A Acrópole que vi não era a Acrópole dos turistas. Aliás, àquela hora, sob o sol a pino, os turistas eram raros. E não vinham em grupo e não traziam guia. Não eram turistas. Não havia neles nem a curiosidade nem a agitação de quem é, como turista, exterior ao que vê. Era gente que viera de longe em busca de um lugar longamente amado, desejado, imaginado. Gente que viera para ser medida, para confrontar com a verdade dum lugar a própria verdade do seu ser.
E sei que não vi a Acrópole de Péricles. Os degraus estão quebrados, as colunas derrubadas, a pintura apagou-se, não há procissões nem sacerdotes, as celas estão vazias, o bronze foi fundido, as métopas, os frontões e os frisos estão dispersos pelos museus do Mundo.
Mas não foi a Acrópole de Péricles nem a de Pisistrato que vim procurar. Não imagino a estátua de Atena Promachos nem a chegada dos persas. Imagino exactamente o que vejo. Na minha imaginação não há nenhuma “Son et lumière”. Não procuro recuo no tempo. Não vim aqui por motivos turísticos. Não tenho curiosidade. E também não vim aqui por motivos de cultura. Não sou arqueólogo. Não vim para saber onde era tecido o véu de Atena nem para identificar o percurso das Panateias. Não vim estudar uma civilização morta. Não vim celebrar o passado. O que está aqui não é passado, é a minha vida, a minha busca. O que está aqui é actual porque é lição do ser. E mais uma vez reconheço que só a arte é didáctica, que só ela me ensina o que só nos termos pode ser ensinado.
Pois é como se a grande mão do sol nos tivesse lavado de todo acidente e de toda a contingência e tivéssemos regressado a uma situação pura. E as palavras que sobem no meu pensamento são as palavras de Parménides de Eleia:
“O ser também não é divisível, pois ele é todo inteiro, idêntico a si mesmo; não sofre nem acrescenta, o que seria contrário à sua coesão, nem diminuição, mas está todo inteiro, ocupado pelo ser; por isso, é inteiramente contínuo, pois o ser é contínuo ao ser”.
Na plenitude do meio-dia as colunas parecem imanentes à luz. O tempo devorou as procissões e os ritos e apagou a tinta das pinturas. Mas na Acrópole saqueada e quebrada permanecem inteira a proporção exacta, a solenidade da atenção, a busca apaixonada, a escrita do ser. Implantadas no sol e no silêncio.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(Texto encontrado num recorte do “Diário Popular” de 21/03/1968)