21.12.19

PRECLARO O DIA





Preclaro o dia em noite de Natal.
O dia em que nos vemos a trocar

as chaves e o luxo da alma
por uma escada plena de anjos.

J. Alberto de Oliveira

16.12.19

BILHAS PARTIDAS





O tempo alonga-se na altura da escada.
No ar adoecido pela fadiga da subida.

E assim vamos com a nuvem que passa
copiando sombras e detritos.

Neste jogo
parecemos bilhas partidas

em vez de irmos inteiros ao deserto
da sede que nos cega.

J. Alberto de Oliveira

8.12.19

DESATINOS





Pela nudez da alba
sem muros nem portas

alguém passa.

Alguém recorta
nos lenços do ar

furtivas lembranças.

Quem passa
e assim me desatina

os pés e as mãos?

J. Alberto de Oliveira

23.11.19

OS IMPERDOÁVEIS





Há na língua italiana, a propósito do imperdoável ou imperdoáveis – gli imperddonabili – alguns vocábulos incisivos no seu dizer significante, sonoridade e vigor:

Intelligenza – faculdade activa do entendimento e lucidez
Eleganza – elegância, delicadeza e brio comunicante
Piglio – toque, distinção deliberada
Disinvoltura – desenvoltura, agilidade viva
Noncuranza – descuido fino
Sprezzatura – o supremo brasão da inteligência aliada à sensibilidade e fidalguia, um modo negligentemente livre de fazer e dizer, “próprio de mestre seguro de si.” (N.Zingarelli)

J. Alberto de Oliveira

16.11.19

O ENSINO DA MELANCOLIA





O ensino da melancolia
soletra o meu nome

como se eu ainda
fosse

um menino da escola.

Chama por mim
e cita coisas amadas

antes que se perca a memória
nas fundas águas caladas.

J. Aberto de Oliveira

10.11.19

EM TEMPO DE BOLOTAS





Será por ignorância, estupidez ou ganância?
Sim.
Às vezes trocamos algumas das nossas pérolas por porcos.
E depois?
Depois damos aos porcos as pérolas restantes
como se fossem bolotas.


J. Alberto de Oliveira

29.10.19

A MÚSICA ENSINA A PERGUNTAR

                                                                                                                                                                                                 Emerenciano




Em que ponto do absoluto
o amor é mais interior que o azul sem mistura?


Somos o barro ou a tela de Deus?


Em que jardim eu devo ainda plantar
roseiras de orvalho?


De que trata a música?


A palavra musical é uma taça de cristal 
cheia de ambrosia ou de água viva?


Onde cintilam as delícias da alegria profunda?

18.10.19

NUM VERSO VADIO





O silêncio maior
na minha voz escrita.

A hora suspensa
num verso vadio.

J. Alberto de Oliveira

9.10.19

AS LEIS DA LUZ





Quando fores embora deixa o bolor
e as peças de roupa usada ou puída.

Larga os restos de remédios e os rascunhos
dos sentimentos e da memória.

Não leves nada contigo
e deixa-te acompanhar pelo desconhecido.

No verso mais profundo
ainda podes ler as leis da luz.


J. Alberto de Oliveira

17.9.19

CONSTELAÇÕES




A noite fecha-se no livro
quando acendes

o verbo da última frase.

Quando o sono da vida
cai no limiar do silêncio.

O verbo torna-se carne
quando tocas nas estrelas

com a largueza do olhar.

J. Alberto de Oliveira

9.9.19

O AR DO AZUL





O ar do azul feito de teoremas

e de claridades
ébrias de vento.

O ar do azul extasia as águas.

J. Alberto de Oliveira

29.8.19

FRAGMENTOS DO IMENSO





Às vezes admito que a vida
seja uma espécie de relance.

Um marmulho de água corredia.




Logo ao primeiro minuto de nascer
o mundo avisou-me

tens que existir para
desassossegadamente viver e morrer.




A rosa do jardim quando é só rosa
torna-se mais atenta

que todas as demais rosas.




O sol em sua regência
fala com as águas do imenso.

J. Alberto de Oliveira

22.8.19

A PIAF - Jorge de Sena





Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,
ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do «ça ira»,
ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma
de não ter tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
das multidões solitárias que teimam em resistir
como melodias valsando suburbanas
nas vielas do amor
e do mundo.

Quem tinha assim a morte na sua voz
e na vida.

 Quem como ela perdeu
 toda a alegria e toda a esperança
 é que pode cantar com esta ciência
 
 o desespero de ser-se um ser humano
 
 entre os humanos que o são tão pouco.

   1964
   JORGE DE SENA
   "Arte de Música"

13.8.19

OS EFEITOS DA MÚSICA - para Luandino Vieira




OS EFEITOS DA MÚSICA
                              para Luandino Vieira




A música é a nossa língua materna.
Na música há uma sintaxe.
Há substantivos ou lembranças cheias de substância
onde corre leite e mel.

A fluência da música transmite silêncios
rigor e desígnios
tempo e consequências imprevisíveis.
A música é o triunfo da vida.

Os desenhos ou efeitos da música são tão verbais
e surpreendentes
como qualquer poema excelente.

J. Alberto de Oliveira

Desenho: Luandino Vieira

5.8.19

COM O LÁPIS NO BOLSO





Quando a noite vem
ouve-se 

a respiração dos bichos.

É maior o assombro
e pairam segredos

a sustentar o silêncio.

À hora em que os bichos 
olham o fogo

eu adormeço
com o lápis no bolso.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: H. Azevedo

2.8.19

AS LEIS DO FOGO





Aonde o assombro?
Aonde a escada sem fim?

Aonde o amor
em romance de sangue?

As leis do fogo
tecem  teias aproximativas

com fios de cegas lembranças.

Quem de amor é sofrido
de assombro anda servido.

J. Alberto de Oliveira

Pintura: Antoni Tàpies

23.7.19

OUTRA VEZ SÁ DE MIRANDA





Ao meio dia em ponto
a luz
e a sombra dos ramos
da palmeira

pousam quase a prumo
no silêncio do ar.

Ao meio dia o sol é grande
diria outra vez
por cegos motivos
o poeta Sá de Miranda.

J. Alberto de Oliveira

16.7.19

NOS VERSOS DE SÁ DE MIRANDA





O sol cai no meu corpo.
O sol é grande
nos versos de Sá de Miranda.

O sol
cai em meus cuidados graves
da mesma forma

que pelos montes
caem co’a calma as aves.

J. Alberto de Oliveira

10.7.19

COM PALAVRAS SILENCIOSAS



A Mãe primeiro adivinhou o filho
ou seja o suporte do seu nome.
Depois pensou nas coisas supremas da vida.

O volume dos dias corridos era essencial.

A Mãe ordenava os trabalhos do sol
com palavras silenciosas.

A fluidez quente do leite nos guiava.

Eu crescia de costas deitadas no linho
e de olhos fixos na melancolia solar.

J. Alberto de Oliveira

Desenho: Alberto Péssimo


25.6.19

O MEDO E PAVOR

                                                                                                      "Claramente azul" - Leça da Palmeira



O medo e pavor às aranhas
fecharam a ferro e fogo

o jardim dado ao sol.

Entre a ferrugem copiosa
e os espigões da frieza

o poema não floriu mais.

O medo e a aridez
dizimaram-te as rosas

oh Dional!

J. Alberto de Oliveira




22.6.19

O LÁPIS E A SAFA





Falta-me um mata-borrão para ser mais antigo.
Desde que a tinta, o tinteiro, as penas e canetas de tinta permanente ficaram pelo caminho, o mata-borrão é quase e apenas uma lembrança.
Ainda conservo uma folhinha de mata-borrão só para não esquecer.

Se eu fosse escrivão, teria os necessários instrumentos do ofício. Porém, basta-me o lápis para o texto de ser e para sublinhar frases nos livros.
Às vezes também me sirvo de uma safa (substantivo feminino: borracha de apagar) para anular o inútil.

Não gosto de borrar a escrita. Já não sou aprendiz de borrões.

Nos arredores de mim leio muitas palavras alheias que precisam de uma safa, de lixívia ou de corrector.

Com as palavras denegridas são muitos os borrões da vida.

J. Alberto de Oliveira

15.6.19

EM CARNE VIVA





Saí da palavra justa 
em poema.

Em carne viva nasci.

Do cego sopro do ar
vivo coberto de espuma

de nomes e de sal.

J. Alberto de Oliveira

12.6.19

CONTRA O MURO




Contra o muro que anoitece
resiste o poeta

que não se fia em vazias conversas.

Mudo ali permanece
de mão aberta

e pensativo para o que der e vier.

J. Alberto de Oliveira




27.5.19

A PINHA ACESA





A alegria verbal talvez seja a minha origem.
Nasci para que se não apagasse a pinha acesa
de uma  noite de Setembro.
Para que nada se perdesse deram-me um nome.
O ar respirado também transmitia amor
e a casa ficou mais luminosa.
Quando o sol começou a trabalhar
ainda havia rosas perto da soleira da porta.
Para que a alegria fosse completa
(foi o que depois me disseram)
só faltavam  o lápis e um caderno.

J. Alberto de Oliveira

20.5.19

O ANJO DA NOITE VIVA




O ANJO DA NOITE VIVA
                        para Milay

Ouve-se a respiração
da noite e dos bichos

nas luras do escuro.

E quem ama
não dorme longe do fogo.

As estrelas vivas alumiam
o sono dentro dos sonhos.

Só falta uma escada.

A escada para o poeta
mais alto subir.

Para o poeta lá no alto
ser o anjo da noite viva.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Miró

9.5.19

COM CITAÇÃO DE HERBERTO HELDER




se alguém respirasse e cantasse uma palavra,
e súbito fosse respirado por ela, fosse
cantado assim
de puro júbilo ou, quem sabe? de medo puro,
poria no termo o selo de si mesmo?
quem é que sabe onde fica o mundo?
e de quê e de quem e de como é composto e dito,
de como uma palavra, uma só, regula
ininterruptamente tudo, e alguém a põe em uso,
oh glória idiomática,
e é posto e disposto até que abuso de que espécie de infuso espírito
das profundezas dessa palavra

Herberto Helder


COM CITAÇÃO DE HERBERTO  HELDER

Se alguém respirasse e arrebatasse
uma palavra

e súbito fosse respirado por ela.

Se fosse amado assim
de assombro puro

teria as chaves da casa.

Teria o selo de todos os segredos
e as profundezas do mundo.

J. Alberto de Oliveira

2.5.19

A ROSA TODA NUA





Às horas do orvalho
a rosa é mais alma

que rosa.

A sua luz
é dada algures
ainda sem degraus
nem parcelas de pó

Assim criada
e mais que tudo

é rosa amada
a rosa que dói.

A rosa toda nua.

J. Alberto de Oliveira

23.4.19

O NOSSO GÉNIO FERNANDO PESSOA








O nosso génio - Fernando Pessoa - foi "surpreendido" a entrar no Schauspielhaus Zürich.

"Um homem de génio muitas vezes não tem família. 
Tem parentes."
Fernando Pessoa

O Schauspielhaus Zürich é um dos teatros mais proeminentes e importantes do mundo de língua alemã. Também é conhecido como "Pfauenbühne".

O grande teatro tem 750 lugares.


19.4.19

NAS PÁGINAS DO CADERNO





Desconheço as leis do mundo
porque não sei o que fazer de mim.

Ando perdido no meio da linguagem
porque ninguém dá a mão

ao que pergunto.

Quase tudo me distancia
do pulso de ser

do que resta na memória

do que digo
e do lugar em que nasci.

Sem nenhuma resposta
crescem nas páginas do caderno

resquícios confusos.

O silêncio fulmina o corpo
de alto a baixo

com névoas e linhas
de apagamento e dor.

J. Alberto de Oliveira

3.4.19

ERA QUASE SÓ NOITE





Era quase só noite
e ouvia-se o fim do dia

a adormecer no imenso
com pedacinhos de luz.

Era quase só noite
no murmulho das águas.

No escuro o lápis luzia
mais que a espuma da lua.

Era quase só noite 
o sopro do sono todo nu.

J. Alberto de Oliveira

27.3.19

ANTES DE ADORMECER




Com o dia a cair
uma vela se acende.

As aves chamam-se
antes de adormecer.

e tu onde queres ainda
dizer-me um segredo?

J. Alberto de Oliveira



19.3.19

PORCIÚNCULAS DE MIM





Sabias que o meu nome aproximativo
tem dias em que não fala?
Refugia-se num rascunho de melancolia.

+ = +

A sombra que sai de mim
talvez tenha voz própria.

Fiel ao sopro que me guia
de fraga em fraga

quem me inspira até um dia?

+ = +

A poesia redime. Protege. Defende-me da polícia e dos escribas dos costumes.
Afasta-me das leis cegas, surdas e civis.
Herberto Helder disse que a poesia” salvaguarda a preciosidade do espírito”.

J. Alberto de Oliveira

Desenho: Alberto Péssimo


11.3.19

INÊS DE CASTRO





Uma vez pedi à noite
para se sentar comigo

num recanto do jardim.

Ainda me lembro
de te ver no auge do sono.

Eu queria linda Inês
adormecer

em teus olhos postos em sossego.

Eu queria todas as lembranças
que na alma escondias. 

Entre sonhos e pensamentos
eram tudo memórias de alegria.

J. Alberto de Oliveira

Fonte: Luís Vaz de Camões – Lusíadas – Canto III