3.9.22

A CONSTRUÇÃO DO TEXTO


 

A construção do texto começa

onde os amantes sonham.

 

Onde cada palavra 

sensitiva espera.


Onde a gramática da fala

é de ouro arrebatado ao fogo.

J. Alberto de Oliveira


13.8.22

A LUZ DE ’SCREVER


 

Algumas palavras resumem o júbilo

de ver o invisível.

 

Recuso-me a existir só para ’star.

 

O que não entendo

espero.

 

Desejo que a vida cumpra 

a razão estética da mão a ’screver


Talvez o azul do linho em flor seja a cor

mais próxima das águas e do quotidiano das janelas.


O azul da tinta anda sempre comigo.

 

À hora do crepúsculo deixo que a porta entreaberta

mostre a luz de ’screver.

 

O primor de acender o fogo começa

pela substância de uma confidência.

                                  

Alumia o poema completo.

J. Alberto de Oliveira

7.8.22

À HORA DO LUSCO-FUSCO


 

À hora do lusco-fusco

as aves mais pequenas

 

esvoaçam

de ramo em ramo.

 

Iminentemente

esperam por mim.

 

Esperam que a noite e a lua

entrem em nossas vidas.

J. Alberto de Oliveira


28.7.22

DAI-ME UM LÁPIS


 

Dai-me um lápis.

Quero desenhar letras e matéria quente.

Quero a invisível substância 

e tudo com nomes antigos

num vidro quebrado por mim e pelo vento.

Eu sei de coisas essenciais aos sítios da infância.


J. Alberto de Oliveira


16.7.22

SE VÓS AMANTES



 Se vós amantes quereis do lume

as melhores recompensas

 

acendei pinhas à mistura

com uma ou duas mãos cheias

 

de preciosos grãos de incenso.

J. Alberto de Oliveira


8.7.22

NINFAS E LUSÍADAS




 

No concerto para flauta e harpa de Mozart, K. 299, ouve-se a correria dos navegantes lusitanos atrás das ninfas que lhes fogem com lascivos gritinhos ardentes. O som da harpa sublinha o delicado movimento das ninfas. 

É magnífico o diálogo entre a harpa e a flauta.

Nos ares a voz e os passos dos marinheiros descobridores evidencia a sonoridade da flauta. 

Naquela ilha distante e divinal, os mareantes e as ninfas enamoram-se. O espaço vegetal da ínsula é de música e de amores diversos.

J. Alberto de Oliveira


27.6.22

EU VI UM ANJO


 

Eu vi um anjo molhar os pés

no relento da manhã.

 

E de súbito adormeceu

entre as flores e as ervas.

 

Não teve repouso toda a noite.

Não havia dormido mesmo nada.

J. Alberto de Oliveira




15.6.22

JURAS DO TEMPO




 

Guardo furtivos segredos

dentro das minhas lembranças.

Alguns são lendas do mar.

Outros, amores da infância.

 

Das horas todas eu fujo

com minha vida nos braços.

Dos muros e gente absurda

Fujo com desembaraço.

 

A malícia fria do tempo

mói às claras e no escuro.

Mói-nos a carne e os ossos.

Juras do tempo não curam.

 J. Alberto de Oliveira

9.6.22

CELEBRANDO CAMÕES


 

De carne e sonhos

camoniano é o amor.


Cativo de seu querer ardente

 só lhe falta que “a todos avivente”.

J. Alberto de Oliveira


30.5.22

CITANDO SÁ DE MIRANDA


 

Quando o sol é grande


o ar cálido nos olhos

 mostra como ardem


os insectos e as flores.

 

Quando o sol é grande

caem co’a calma as aves

 

em seus mimos e amores.

J. Alberto de Oliveira


19.5.22

LENDO FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO


 

Amor é água antes do fogo.

Ou para mais dizer:

é dor o amor enquanto espera.

 

São apenas dois versos que li

lendo a Fiama.

 

E foi quando escrevi:

 

sei de uma fonte

que muito luzia.

 

Luzia mais que o ar.

 

Eu bebia o fogo

no seu primor

 

e na ideia da água.

J. Alberto de Oliveira


13.5.22

A TORRE DA MINHA ALDEIA




 

Não sei quem me espera.

Não sei quem se esconde

 

por dentro do meu nome.

 

Não sei quem fez do sol

a torre da minha aldeia.

 

Não sei e não sei e não sei

nem quero saber.

 

Só peço

para não me perder cego.

J. Alberto de Oliveira


3.5.22

O SONHO QUE TIVE


 

Nunca transcrevo os sonhos que me visitam durante o sono. Deixo que eles se diluam no olvido. Mas o sonho, o que tive a última noite, aqui fica.

Sonhei que detive no ar uma ave muito, muito pequenina. Esvoaçava à minha volta. Era belíssima e de cor amarela. Tinha os olhos muito inquietos e meigos. Queria voar. Mas eu só imaginava uma gaiola e comida para lhe dar. Eu queria que ficasse comigo todos os dias para todos os dias a ver.

J. Alberto de Oliveira


22.4.22

AS GOTAS PRIMORDIAIS




 

Nos vidros da minha janela

virada a sul

as gotas primordiais são da chuva.

 

Não pesam mais que o ar

da sua própria luz.

 

Escorrem como se fossem lágrimas

a cair nos lenços da alma.

 

Escorrem porque é de vidro e névoa

o dom precioso da minha janela.

J. Alberto de Oliveira


11.4.22

O REDIVIVO EM TRÊS DEGRAUS


1 - ENREDO

 

Madalena foi ao sepulcro muito cedo. Ainda era escura a madrugada.

Madalena olhou para dentro do rochedo e viu que estava limpo e vazio. Ainda bem, porque assim ela passa de uma cisma a outra.

Madalena esquece num relâmpago a palidez do corpo deixado no abismo da morte e principia a intuir um corpo redivivo, iluminante.

Em alvoroço ela correu para o mundo. Foi contar tudo.

Madalena correu ao ritmo da memória tocada por palavras novas.

Pelo caminho, Madalena aprendeu a conjugar o verbo ressuscitar com ressonâncias vivas, rutilantes.

 

 

2 - QUASI-POEMA

 

A ressuscitação foi um sublime flash divino.

Um instante de vigor na presença de anjos.

 

E depois, só depois, foi dito aos humanos: “ressuscitou!”

 

O redivivo mostrou-se e falou a quem procurava o seu corpo,

seu corpo de súbito renascido para o alvoroço do encontro.

 

O redivivo falou primeiro à mulher que saiu de casa

pelo silêncio da madrugada ainda escura.

 

Superando a distância, as encruzilhadas e as horas tardias,

a mulher antecipou-se aos ruídos do mundo.

 

Venceu a negrura, a morte e o vazio.

 

 

3 - POEMA

 

Para dentro da pedra

escorre em ferida

o silêncio da pergunta

 

onde o puseram

o corpo que tanto procuro?

 

Para dentro da pedra

se debruça

o pensamento da mulher

 

apurando os sentidos do amor

com perfumes de lume novo.

 J. Alberto de Oliveira


 

5.4.22

A DOURADA MANSIDÃO


 

Depois de lidas uma a uma

todas as letras do dia

 

só me fica a dourada mansidão.


Aquela pausa do alvoroço

que adivinho nos olhos

 

e no espírito adormecido

das criaturas soleníssimas

 

logo após o pôr do sol.

J, Alberto de Oliveira


27.3.22

O DICIONÁRIO DO AMOR


 

Luís de Camões desejava e sentia tudo o que seus olhos viam:

o rosto e o corpo da amada, uma bonina, as ondas do mar.

Escrevia as suas cartas, estâncias, versos e rimas como quem respira.

Com arte e génio Luís de Camões fixou na língua portuguesa

as palavras

que não podem ser esquecidas.

 

É urgente ler o Poeta para que nunca se perca a cadência,

as sonoridades e a alma da melancolia camoniana.

Luís de Camões no seu impulso irónico, brigão e amoroso,

imaginava o dicionário que nos falta:

o dicionário do amor.

Um dicionário onde a fala é ditosa e preciosa. Onde o sensível, épica e liricamente, se mostra e manifesta.

J. Alberto de Oliveira

12.3.22

NO FIM DA TRAVESSIA




 

Antes de fechar os olhos

lavem-me as feridas

 

ainda com sangue à mostra.

 

No fim da travessia

não escrevam editais

 

com piedosos propósitos.

 

Limpem-me de tudo

com sete versos

 

de água corredia e nua.

J. Alberto de Oliveira


27.2.22

AS PRIMÍCIAS DA ALTURA




Que a tua boca aturdida

pela mudez da noite

 

dite palavras silenciosas.

 

Depois

vai à janela de casa.

 

Acena a quem passa

 

com a sua alma perdida

entre linhas de versos nus.

 

No escuro do relento

estremeçam

 

todas as primícias da altura.

J. Alberto de Oliveira


19.2.22

ÀS PRIMEIRAS HORAS


 

Às primeiras horas do nosso pão de cada dia

escrevo em folhas alumiadas pelo fogo.

 

Escrevo sacudindo o entulho

para não deixar que alguma vez ele me cubra.

 

Escrevo desatinos e seu alvoroço

subtraindo ao céu-da-boca frases antigas

 

que ressoam na garganta ao rubro.

J. Alberto de Oliveira