5.4.22

A DOURADA MANSIDÃO


 

Depois de lidas uma a uma

todas as letras do dia

 

só me fica a dourada mansidão.


Aquela pausa do alvoroço

que adivinho nos olhos

 

e no espírito adormecido

das criaturas soleníssimas

 

logo após o pôr do sol.

J, Alberto de Oliveira


27.3.22

O DICIONÁRIO DO AMOR


 

Luís de Camões desejava e sentia tudo o que seus olhos viam:

o rosto e o corpo da amada, uma bonina, as ondas do mar.

Escrevia as suas cartas, estâncias, versos e rimas como quem respira.

Com arte e génio Luís de Camões fixou na língua portuguesa

as palavras

que não podem ser esquecidas.

 

É urgente ler o Poeta para que nunca se perca a cadência,

as sonoridades e a alma da melancolia camoniana.

Luís de Camões no seu impulso irónico, brigão e amoroso,

imaginava o dicionário que nos falta:

o dicionário do amor.

Um dicionário onde a fala é ditosa e preciosa. Onde o sensível, épica e liricamente, se mostra e manifesta.

J. Alberto de Oliveira

12.3.22

NO FIM DA TRAVESSIA




 

Antes de fechar os olhos

lavem-me as feridas

 

ainda com sangue à mostra.

 

No fim da travessia

não escrevam editais

 

com piedosos propósitos.

 

Limpem-me de tudo

com sete versos

 

de água corredia e nua.

J. Alberto de Oliveira


27.2.22

AS PRIMÍCIAS DA ALTURA




Que a tua boca aturdida

pela mudez da noite

 

dite palavras silenciosas.

 

Depois

vai à janela de casa.

 

Acena a quem passa

 

com a sua alma perdida

entre linhas de versos nus.

 

No escuro do relento

estremeçam

 

todas as primícias da altura.

J. Alberto de Oliveira


19.2.22

ÀS PRIMEIRAS HORAS


 

Às primeiras horas do nosso pão de cada dia

escrevo em folhas alumiadas pelo fogo.

 

Escrevo sacudindo o entulho

para não deixar que alguma vez ele me cubra.

 

Escrevo desatinos e seu alvoroço

subtraindo ao céu-da-boca frases antigas

 

que ressoam na garganta ao rubro.

J. Alberto de Oliveira

16.2.22

UM SEGREDO




Sei um segredo

que vou deixar para depois.

 

É uma lembrança no mar

sonhada fora do tempo.

 

Vale tudo ou nada.

Não tem som nem letras.

J. Alberto de Oliveira


8.2.22

DAS NOITES SEM LUA


Na mansidão escura

das noites sem lua

 

a fala das estrelas

era pertinente  e altiva.

 

Que me queriam as estrelas?

Que me diziam em surdina?

 

Incertezas e a cinza da vida.

J. Alberto de Oliveira


1.2.22

NO MEU SURRÃO DE SONHOS



No meu surrão de sonhos

guardo o pão e versos.

 

No meu surrão de fantasias

escondo alguns rascunhos.


Nele abrigo papéis velhos

de histórias para os amigos.

 

No meu surrão de sonhos

há coisas que nem adivinhas.

J. Alberto de Oliveira


 

24.1.22

SE EU ADORMECER


 

Se eu adormecer no ponto

mais sensível do sono


nunca digas adeus.


Deixa-me primeiro

inventar uma história.


Quero um feixe de frases


que tenham sido atadas

por sete fios de sol.


Também quero um aceno

ao alcance de tudo ou nada.


Um vadio aceno da mão

cheia de versos travessos.

J. Alberto de Oliveira



15.1.22

SÓ DEPOIS FECHA A PORTA


 

Traz uma rosa.

Entra nos meus segredos.

 

Deixa o pensamento

e seus truques lá fora.

 

Depois

e só depois fecha a porta.

J. Aberto de Oliveira


7.1.22

DA ALMA DE CHOPIN


 

Quando abriste oh lys

o dicionário na palavra batimento

 

eu não sabia o que vinhas inspirar.

 

Como não disseste nada

eu pensei em batimentos da alma.

 

Em batimentos do coração e outros.

 

Eu não sei mas hei-de saber

se umas tantas notas musicais

 

também são batimentos

 

ou tão só movimento de partículas

da alma de Chopin.

 

Da alma no coração

abrasivo dos sentimentos.

 J. Alberto de Oliveira


30.12.21

À LUZ DA CANDEIA


Por mais que o vento

sopre lá fora

 

o leite e o mel resplendem

nos ângulos da cozinha.

 

O leite e o mel escorrem

à luz da candeia.

 

Na sua recompensa

não há sombras nem medo

 

O pavio dá luz inteira. 

J. Alberto de Oliveira

 

22.12.21

EM LANCE DE ALMA


 

Sê complacente comigo
oh Dional.

Dita-me palavras suspensas
da língua e do ar em rodopio.

Ensina-me a escrever
o que eu nunca soube dizer.

E por fim
sem nada em que pensar

recita em lance de alma
a cadência

de uma frase musical.

J. Alberto de Oliveira

Foto: Renato Roque

11.12.21

A AGULHA PERDIDA


Neste palheiro imenso

de pronúncias diversas

 

o poeta procura a difícil

agulha perdida.

 

Procura o verso

rigorosamente certo.

 

O som das palavras

exactas na sua medida.

J. Alberto de Oliveira

Fotografia: José Miguel Reis

 

2.12.21

A MÍSTICA ROSA


 

Por quem devo saber 

o modo como a rosa

 

é o tempo de si mesma

entre o sol e a vida?

 

A quem devo dizer 

que a mística rosa

 

por amor do seu nome

ostenta a glória de ser?

J. Alberto de Oliveira


30.11.21

O QUE VINHA DO MAR



 

Sentada na soleira da porta, a mulher recebia o que vinha do mar.

O visível e o invisível fluíam no seu olhar contemplativo.
Entre leves sombras de névoa e luz, entre sons de linhas de água e a pronúncia de algumas frases, parecia-lhe ouvir musicalmente os segredos que há muito, muitíssimo tempo não ouvia assim.

Veio o Poeta. E, com a mão direita pousada no ombro da mulher, perguntou:

- Como te chamas?
A mulher-doçura do vento respondeu:
- O meu nome anda perdido no livro das tuas palavras.
J. Alberto de Oliveira

25.11.21

DEMORADAMENTE


 

Demoradamente o olhar se alicerça nas estrelas

e no seu firmamento.

 

Tudo lá no alto me parece firme ou eterno.

 

É um espaço onde o tempo talvez não exista.

O espaço onde parece que nada apodrece.

J. Alberto de Oliveira


18.11.21

BRINCAR COM A ALMA


 

Quando eu não posso brincar

com a alma

 

as horas ficam entrevadas.

 

De bruços

caio no lamaçal do luto.

 

Faltam-me as palavras

e a substância da música.

 

Quando eu não posso brincar

com a alma

 

falta-me a luz da gramática.

J. Alberto de Oliveira


11.11.21

O SOL NAS ALTURAS




 

O sol nas alturas

e o mel nos rochedos.

 

A história da água

no linho da mesa.

 

O azul da fala nua

nos frutos da palavra.

 

Íntimo rejubila o ar

nos átrios do lume.

J. Alberto de Oliveira


5.11.21

O MAR


 

O mar que lês no poema

tem a mesma sonoridade

 

que o mar dos navegantes.

 

Um e outro ondulam.

Precisam da eternidade.

J. Alberto de Oliveira