27.7.21

A BILHA E O LÁPIS


 

Não sei desenhar rostos nem objectos,

apesar de a minha professora das coisas primeiras

nos ensinar a fazer cópias de uma bilha bojuda,

com formas e beleza da ternura.

 

Hoje, eu daria tudo para ver os meus primeiros exercícios de desenho.

Que me fizeram às cópias da bilha de barro?

Onde anda a bilha bojuda?

 

E o lápis?

Perdeu-se pelos caminhos da escola?

 

Eu daria tudo para ter aquela bilha de barro e dela beber água pura.

Eu amo a bilha.

Amo-a tanto, que até sei que o amor se faz do mesmo barro da bilha

que eu desenhava na minha escola antiga.

J. Alberto de Oliveira

19.7.21

ASSIS - PAUL CELAN


 

Noite úmbrica.

Noite úmbrica com a prata do sino e da folha da oliveira.

Noite úmbrica com a pedra que para aqui trouxeste.

Noite úmbrica com a pedra.

           

            Mudo o que entrou na vida, mudo.

            Esvazia e enche os jarros.

 

Jarro de terra.

Jarro de terra que traz no barro a mão do oleiro.

Jarro de terra que a mão de uma sombra para sempre fechou.

Jarro de terra com o selo da sombra.

 

            Pedra para onde quer que olhes, pedra.

            Deixa entrar o burrico.

 

Animal a trote.

Animal a trote na neve espalhada pela mais nua mão.

Animal a trote adiante da palavra que se fechou.

Animal a trote que vem comer o sono à mão.

 

           Brilho que não consola, brilho.

Os mortos, Francisco, ainda pedem esmola.

Paul Celan


Tradução: Y. K. Centeno e João Barrento


14.7.21

A MATÉRIA DA LUZ







Se puderes ó minha vida

traduz a matéria da luz.

 

E diz-me em tom maior

um sinónimo de música.

 

Se puderes estremece

para mim

 

no acmè de uma história.

J. Alberto de Oliveira

 

7.7.21

A MEIO DA FRASE



A meio da frase

vimos a lua subir.

 

Era já de noite.

 

A meio do caminho

de vigília ao silêncio

 

luzia o luar.

 

No fim da travessia

a lua voltou atrás. 

J. Alberto de Oliveira

 

1.7.21

ESCRITO NUM BILHETE


 

São teus os poemas

que se apropriam

 

da memória.

 

Com eles decifras a distância

e os tempos do verbo

 

escrito num bilhete.

 

O que te salva ó António

lê-se nuns versos de água

 

onde não há gaivotas mortas.

J. Alberto de Oliveira

Imagem:Bilhete de António Nobre após a ida à Quinta da Conceição, Leça Palmeira, com o inglesa Charlotte.


23.6.21

ALUMIAÇÕES E LEMBRANÇAS



 

Quando era criança, os nomes que dizia, todos ou quase todos,

eram incompletos.

Somente as formas e a grandeza das coisas permaneciam inteiras

nos meus olhos.

Com os objectos do mundo, na sua complementaridade justa e geométrica,

eu compunha as primeiras frases, incautas, frágeis e breves.

Eram linhas de fulgor, lúdicas, miríficas e matinais.

 

As letras nasciam no momento em que os olhos de ser

e a mão de escrever

tocavam e subiam aos sentidos do silêncio.

 

Pedra a pedra ainda saberei construir a idade que me resta?

Quem me ajuda a erguer ou a restaurar casas invisíveis

em lugares inacessíveis?

São casas ou abrigos para as folhas do pensamento,

para as alumiações

e para os segredos que um dia não poderei levar comigo.

J. Alberto de Oliveira

16.6.21

EM TEMPO DE ROSAS


 

Juntem-se as rosas ao vento

até que o vento e as rosas

 

sejam uma carta de lembranças.

 

Uma carta de beijos e oferendas

para os nomes

 

que me selaram o sangue.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Joan Miró

9.6.21

AO LONGO DE UMA PRAIA - Luís de Camões


 

Quando o sol encoberto vai mostrando 

Ao mundo a luz quieta e duvidosa,

Ao longo de uma praia deleitosa

Vou na minha inimiga imaginando.


Aqui a vi, os cabelos concertando;

Ali, coa mão na face tão formosa;

Aqui falando alegre, ali cuidosa;

Agora estando queda, agora andando.


Aqui esteve sentada, ali me viu,

Erguendo os olhos tão isentos;

Comovida aqui um pouco, ali segura;


Aqui se entristeceu, ali se riu.

E, enfim, nestes cansados pensamentos

Passo esta vida vã, que sempre dura.

Luís de Camões 





2.6.21

NA CLAREIRA DO JARDIM


 

Na clareira do jardim

há uma pedra essencial.

 

A pedra que sustenta

o dia em que nasci.

 

Na clareira do jardim

há uma pedra atenta.

 

A pedra dos ventos

que falam por mim.

J. Alberto de Oliveira


27.5.21

EM LEÇA DA PALMEIRA


Em Leça da Palmeira

a escultura de Cabrita Reis

 

sublinha as linhas do horizonte.

 

Em Leça da Palmeira

o azul do céu dissolve-se.

 

O ar cresce

e o mar torna-se maior.

 

Em Leça da Palmeira

o pensamento fica absorto

 

para deixar os olhos

desatar os lenços do sol.

J. Alberto de Oliveira

Escultura de P. Cabrita Reis - Fot. de J. A. de Oliveira

 

20.5.21

CANTABILE

 



A fala da Mãe era cantabile. 
Dizia palavras de uso diário quando tinha os filhos à mesa.


A Mãe não falava enquanto os filhos dormiam.

J. Alberto de Oliveira


Memorável: os dias da Mãe começaram na quinta-feira, 13 de Julho de 1924.

Desenho: Alberto Péssimo

13.5.21

UM CÉU DE CENTELHAS


As minhas alumiações começaram pelo amor

intemporal da memória.

Com rigor e pudor eu as transmitia ao papel.

 

Não pediam nada em troca.

 

E quando a luz era escassa ou nula

a cegueira da folha em poema

 

mostrava um céu de centelhas.

J. Alberto de Oliveira

 

5.5.21

DEPOIS DO INVERNO


 

Ainda me lembro da jubilosa manhã

em que vi

a primeira rosa que floria depois do inverno.

 

A caminho da escola havia frescura.

 

Arranquei à rosa uma pétala orvalhada.

Limpei as gotas do relento.

 

Abri ao acaso o meu livro de leitura

e fechei-a ali dentro

no silêncio  das palavras que aprendia.

 

Depois do inverno

talvez tudo seja mais verdade que mentira.

 

Improváveis sejam as palavras

e as rosas que ainda soletro.

J. Alberto de Oliveira


29.4.21

ZECA AFONSO


 

"MEMÓRIAS DE UMA AULA NO LICEU DE SETÚBAL"

por Hélida Carvalho Santos: - Barreiro, 4 Out. 1967

Revista Visão, 5 de Outubro de 2011  


Segundo dia de aulas. Continua o desassossego, com o pessoal a trocar beijos, abraços e confidências, depois desta longa separação que foram 3 meses e meio de férias. Estávamos todos fartos do verão, com saudades uns dos outros. A sala é a mesma do ano passado, no 1º andar e cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar do material já ser mais do que velho. Somos o 7.º A e como não chumbou nem veio ninguém de novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado. Eu sou o n.º 34, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que é o lugar dos mais altos. 

Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política. 

Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente porque dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmente uma vaga ideia de ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da cantoria se por causa da política. A Inês contou que ouviu o pai comentar, em casa, que o homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza. Quando entrou na sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite da falta. Entrou por ali a dentro, todo despenteado, com uma gabardine na mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:
– Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou chatear. 

Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam a cativar toda a gente. A Carolina virou-se para trás e disse-me que já o tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o rosto não me era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que um homem interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho. Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas. 

Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o bichanar foi subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo acordado. Outro qualquer professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças, mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se importasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto esteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se, efectivamente, evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado, já tinha ganho o primeiro round de simpatia. 

Depois, veio o mais surpreendente:
– Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu. 

Gargalhada geral. 

– Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas. 

Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo, simpático.

– Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria. 

Começámos a olhar uns para os outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado pela frente um professor com tamanha ousadia. 

– Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na prática não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive numa democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana e cruel. 

Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o sorriso e estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os dias, aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o repetirmos na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente como uma nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa. 

– Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem quero perceber.  Estou-me nas tintas para esta porcaria.  Mas, atenção, vocês são outra coisa.  Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem entrar na Faculdade.  Isso, vocês têm que fazer.  Estudar.  Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos filhos.  Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo país.  Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta estudarem umas horas e empinam isto num instante.  Isto não vale nada.  Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral.  Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei. 

Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça.  O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam.  Vou abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade.  Vou ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural. 

Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter notas para ir a exame.  O ponto que farei será com perguntas do vosso livro que terão que ter a paciência de estudar.  A matéria é uma falsidade do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingirem os vossos mais altos objectivos.  Têm que estudar.  Se quiserem copiar é com vocês, não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem trazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho que devem começar a endireitar este país no sentido da honestidade, sim porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas. 

Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos, em qualquer quadrante da sociedade.  Nós temos sempre que mostrar o que somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros.  Por isso, acho que não devem copiar.  Há que criar princípios de honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens e mulheres de Portugal.  Não concordam?  Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula. 

Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que fenómeno é este que aterrou em Setúbal?  Já me esquecia de escrever.  Esta ave rara, o nosso professor de Organização Política, chama-se - chamava-se - Zeca Afonso.»

 ZECA AFONSO - Nasceu 02.08.1929 - Faleceu 23.02.1987  

 


25.4.21

GRÂNDOLA VILA MORENA



Abril ou Novembro.


Todos os meses

são de Grândola Vila Morena!

J. Alberto de Oliveira

20.4.21

O RASCUNHO



Há um exercício adjacente à inspiração: o rascunho.

Eu não escrevo sem o esboço corrigido até à exaustão, porque me engano muito na conjugação dos verbos. Baralho tudo: os tempos, os modos, os aspectos, as pessoas.

É uma agrura que me assiste e justifica esta ideia antiga: os verbos deveriam ser ditos e escritos apenas no infinitivo.

O infinito e depois o infinitivo dos verbos têm muito a ver com a minha infância. Quando eu contemplava o céu em noites estreladas, o espanto e a candura pediam-me palavras de infinitude.

A natureza verbal no infinitivo é simples, justa e firme.

Suscita a amplidão. Alude a uma substância pura.

J. Alberto de Oliveira


 

12.4.21

O PRAZER DO TEXTO


 

O prazer do texto principia pela substituição de uma palavra por outra.

Pela rasura de um parágrafo. 

Pela inversão dos sentidos.

Pela troca de nomes vulgares por outros cheios de mistério.

Pela invenção de algumas figuras.

Pelo afastamento de um objecto.

Pela atenção à vírgula com direito ao seu lugar.

Pela troca da rua por um beco sem saída.

Pela fuga a um sítio quotidiano.

Apesar do esforço, o texto nunca me satisfaz.

A perfeição do texto é difícil.

J. Alberto de Oliveira

Fotografia: J. A. de Oliveira


3.4.21

O VENTO NÃO ENVELHECE


 

Adivinho desde menino que o vento não envelhece.

Dura o tempo todo.

Eu sei que o vento gostou sempre de me instruir

com palavras do mansinho e palavras incendiáveis.

Eu teria uns setes anos de idade.

Nesse dia eu regressava da escola sozinho e meditabundo.

Quase de súbito o vento começou a endiabrar-se.

Esfarrapava as nuvens negras e as últimas folhas do outono.

O vento quando corre furibundo parece que vai a todos os buracos escuros.

Com a língua seca eu lambia o medo.

Os olhos começaram a ficar em nó cego.

O tempo e o vento mediam-me os passos pensativos.

A alma afinava a minha pobreza de criança.

Os relâmpagos alumiavam o mundo.

Só por Deus eu ouvia o vento e trovejos de pavor e susto.

Por bem encontrei um moinho.

Entrei cerrando a porta.

Havia ali um saco de serapilheira.

Deite-me nele e adormeci ao ritmo da mó a moer grãos de milho.

Quando fui para casa o dia estava no fim e o vento soprava macio.

J. Alberto de Oliveira


26.3.21

EM SONHO


Por sorte, em sonho, encontrei um marinheiro

que me contou diversas visões e vivências.

Disse, por exemplo,

que já ninguém leva uma carta fechada

para ser lida no alto mar.

Que os segredos ficam todos em terra

num círculo de silêncio e tristeza até ao regresso.

Que o desejo de partir é igual ao desejo de voltar.

Que todos os marinheiros vão pobres

e todos voltam cheios de mistérios e perguntas.

Disse-me ainda que no alto mar

a cor do tempo umas vezes é salina e azul.

Outras vezes é de névoa profunda.

Que os movimentos da água

esboçam uma beleza antiga.

 

Pelo que que vim a saber

depois do sonho

 

o marinheiro não mentia.

J. Alberto de Oliveira

 

20.3.21

ESCREVER PARA QUÊ?


Escrevo para que o lugar vazio

depois de mim perdure no papel.

 

Escrevo para que o sítio donde terei de sair

 

permaneça nos cadernos do universo  

com letras da triste e leda memória de mim.

J. Alberto de Oliveira

 

14.3.21

PORQUÊ?


 

Porquê?

Porque se torna muito difícil e funesto

explicar

a certas pessoas como se abre

a primeira rosa depois do inverno?

J. Alberto de Oliveira


6.3.21

NO TEMPO DAS FÁBULAS


 

No tempo em que os animais falavam

não havia escrita.

Não havia letras nem lápis nem papel.

 

Só existia a caligrafia do vento

nas folhas das árvores

nas areias do deserto

nas ondas do mar

no estremecer luzente do orvalho.

 

No tempo em que os animais falavam

os bichos conheciam as ideias dos humanos

e diziam tudo o que pensavam acerca de nós.

 

Como os animais já não falam

triunfam as fraudes e bazófias.

J. Alberto de Oliveira


22.2.21

DIADORIM


 

Diadorim.

O nome escrito e narrado por João Guimarães Rosa

em Grande Sertão: Veredas.

 

Diadorim. 

Uma figura enigmaticamente iluminante

de olhos muito verdes.

 

Ser Diadorim é inesperado e desassossegante.

 

Um nome.

Nome e figura não condizem com o real quotidiano.

É um nome cheio de neblina perpetual.

 

Diadorim é o nome fulgor diverso.

Um poema de inspiração contínua.

 

Dizer Diadorim suscita um não sei quê.

 

Diadorim em seu desígnio e sonoridade

é o poema mais pequeno da língua portuguesa.

J. Alberto de Oliveira

18.2.21

FORMOSOS SÃO OS OLHOS






 

Formosos são os olhos

que principiam

 

no amor sonoro

das marés vivas.

 

Primorosos são os olhos

que luzem na flor de sal.

 

Que me enleiam a voz

com verdes algas do mar.

J. Alberto de Oliveira


11.2.21

DUAS CORRENTES


Todos somos atravessados por duas correntes essenciais.

A corrente humana que nos engrandece, nos prolonga e nos eleva à excelsitude.

E a corrente animal que nos faz sofrer e mata como a todos os seres vivos do universo.

J. Alberto de Oliveira

 

4.2.21

OS TELHADOS DA VIDA


 

É perigoso amar

onde são de vidro

 

fuligem

 

cinza e sal

os telhados da vida.

 

É negro e perigoso

morar

 

onde se morre de pavor.

J. Alberto de Oliveira


28.1.21

CADÊNCIA DE AFECTOS


 

São magníficas as regras 

que inspiram a intenção 


imprevisível da música. 


Que se apuram 

numa cadência de afectos.

J. Alberto de Oliveira


23.1.21

UM ARGUMENTO


 

A fonte é o ponto

mais sensível da terra

 

onde posso beber

à hora de ir embora.

 

Entre mim e a fonte

 

a sede

é motivo de horas cegas.

 

Um argumento da boca

às vezes tão ávida

 

a pedir água.

J. Alberto de Oliveira


15.1.21

O ESBOÇO



 

Nas linhas que me desenham

o esboço é da casa da criação.

 

Da casa onde havia

um cendal de linho

 

mais antigo que o amor.

 

A minha alma crescia no miolo

do pão que sabia a leite quente.

 

Na mesa do pão tudo luzia. 

 

Todas as letras do anoitecer

entravam pela cancela amiga

 

que também para ti se abria.

J. Alberto de Oliveira