31.12.20

OS LAMEIROS


 

Os lameiros são espelhos de água e de inverno.

As árvores sem folhas e as nuvens sem rasgões para o azul do céu, aludem ao abandono.

Há pássaros que não emigram. Persistem iguais aos seus antepassados de há trezentos anos.

Limitam-se a viver. Pouco ou nada cantam. Piam e voam de ramo em ramo.

 

O cenário, que vejo com estes olhos que a terra me há-de comer, é todo interior.

 

Os lameiros, a água, as árvores, as nuvens espessas, a erva e os pássaros transformam-se em espírito absorto e pensativo.

 

Este é o seu destino, expansivo até ao fim dos tempos. Esta é a sintaxe do sentimento obscurecido pelo rigor de geadas e frios ventos.

J. Alberto de Oliveira

22.12.20

A DIVINAL CLARIDADE - Gil Vicente


 

A divinal claridade

Seja em vosso entendimento,

E vos dê conhecimento

De sua natividade.


Gil Vicente - Auto da Fé - 1510


18.12.20

TALVEZ UM DIA


 

Talvez um dia se possa ler

no imo sensível da poesia

 

a sorte de horas somadas

ao acaso de palavras extremas.

 

Talvez se possa dizer

 

que a poesia é mais funda e viva

que uma ferida tocada pelo sal.

J. Alberto de Oliveira


11.12.20

VITA BREVIS


 


Se puderdes trabalhar por mim, dai-me de comer e deixai-me pensar aquilo que nem imaginais.

Deixai-me soletrar o que nem ousais dizer.

Possa eu adivinhar o que nunca haveis de ouvir.

Tenha eu o tempo propício para ver o limiar do invisível e sonhar o nada que é evidente.

E quando eu tiver fome, trazei um naco de pão, ó companheiros do mundo.

 J. Alberto de Oliveira

(Texto escrito enquanto ouvia Khatia Buniatishvili ao piano na Casa da Música, no dia 06/10/2019)


4.12.20

CORES E COTOVIAS



Eu sou o nó cego do meu próprio nome

disse o poeta.

E naquele dia não escreveu mais nenhum verso

ou argumento da melancolia.

 

Saiu de casa ao lusco-fusco.

 

Desceu ao jardim

e sentou-se na sua pedra 

para ouvir a arte musical de cores e cotovias.

J. Alberto de Oliveira

 

26.11.20

POR UM CÊNTIMO DE SOL


Por um cêntimo de sol vou indo

impróprio de registo ou notícia.

 

Desço à rua de mala pronta.

Não perco o passo nem a fronte.

 

Desço à rua e faço a travessia

saudando a aragem e as sombras.

J. Alberto de Oliveira


21.11.20

SE EU ADORMECER



Se eu adormecer no ponto

mais sensível do sono


nunca digas adeus.

 

Deixa-me primeiro

inventar uma história.

 

Quero um feixe de frases a

por um cordel de sete nós.


Quero um feixe de frases


que tenham sido atadas

por sete fios de sol.

 

Também quero um aceno

ao alcance de tudo ou nada.

 

Um vadio aceno da mão

cheia de versos travessos.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Pablo Picasso

 

14.11.20

NA ÚLTIMA DOBRA


 


Na última dobra do linho

a hora que nos espera

 

apaga as coisas visíveis

e tira-nos o tubo do oxigénio.

 

Na última dobra do linho

morre-se deste modo:

 

simplesmente com falta

de oxigénio e de poesia.

J. Alberto de Oliveira



3.11.20

LUGARES INCERTOS


 


Se me perguntares a que horas eu volto para casa

eu direi que todas as horas são improváveis.

 

São lugares incertos os meus pontos de partida.

E demais a mais faço o caminho em bicos de pés.

 

Com os olhos afeitos ao escuro e ao silêncio macio.


J. Alberto de Oliveira


28.10.20

NOITE DE NASCER


 

Lunar e profunda era a noite

em que nasci dado ao mundo.

 

Suspensa a noite unia


o ar da luz

e o leite de beijos


aos murmúrios em desalinho.

 

De luxo 

era a noite dada


em lídimo nó

ao meu cordão umbilical.

J. Alberto de Oliveira

Fotografia: eclipse lunar (27/07/2018)  - Horácio Azevedo             


20.10.20

PARA SUBIR DEVAGAR



Para compreender o mundo, precisas de companhia equivalente

a sete medidas de farinha-triga com uma pequeníssima porção de fermento.

E, sobretudo, é necessário que evites o uso e abuso do quotidiano.

 

Lembra-te que os jogos de palavras azedam o convívio e a expectativa do sono.

Olha que há muitas escalas da beleza e da linguagem.

 

Para subir devagar, não esqueças que as escadas mais preciosas

são de madeira e suportam mal cargas pesadas.


J. Alberto de Oliveira

 

13.10.20

UMA CAMÉLIA


 

Não te afastes da frente

por mais que soprem os ventos.

 

A voz sem autor

é uma espécie de tela escura.

 

Não te corrompas

nem te iludas.

 

Uma camélia com tinta rubra  

fia mais fino que o mundo.


J. Alberto de Oliveira


3.10.20

S. FRANCISCO DE ASSIS


S. Francisco de Assis desafiou a morte com serenidade e louvor. Contrariamente à maioria dos humanos, que a olham “tão odiosa e terrível”, o Santo convidou-a a hospedar-se em sua casa: “Bem-vinda seja – dizia – a minha irmã morte”.

E, para o médico: “Coragem, irmão médico, não receies dizer-me que está próxima a minha morte, porque ela é para mim a porta da vida”.

E para os irmãos: “Quando me virdes entrar em agonia, outra vez nu me haveis de estender no chão, como anteontem, e assim morto, deixai-me jazer o tempo que levaria um homem a percorrer folgadamente uma milha”. (2 Celano, 217)

Possivelmente o tempo que vai da terra à eternidade é o mesmo que demora um homem a fazer a pé 1.609,344 metros, isto é, uma milha.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Alberto Péssimo



 

25.9.20

AUTO-RETRATO


 

Olhos sedentos e pensativos.

Corpo sedentário e corrompido


por ventos marítimos.

J. Alberto de Oliveira


22.9.20

POEMA OU EQUAÇÃO?


EQUAÇÃO DE ACORDO COM A RELATIVIDADE





Poema ou Equação?

O que tem mais apuro?

O que é mais belo?

O que é mais profundo?



14.9.20

O OURO EM CONTRAPONTO



Selados pela espuma

do sol em declive

 

os frutos estão maduros.

 

São do mês Setembro

as primícias  do mel.


O mosto arredonda

rumores entre os dedos.

 

O ouro em contraponto

liga as frases sentidas

 

à púrpura nos montes.

J. Alberto de Oliveira

 

10.9.20

NA MARGEM LUMINOSA


Na margem luminosa

do último sonho

 

dei contigo em modos 

de também sonhar.

 

Arvoavas no desvão

de uma folha furtiva.

 

Respiravas para o lado

mais leve do coração.

J. Alberto de Oliveira


9.9.20

O SOM APROXIMATIVO




(Agradecimento ao Dr. José Ribeiro - Edições Afrontamento; à FNAC; aos poetas Manuel António Pina e Cláudio Lima; à D,ra Maria Bochicchio; ao actor Alexandre Falcão; ao Dr. Jorge Coelho).

[…] Agradeço, finalmente, àquelas e àqueles que são a raiz dos meus exercícios poéticos. Não refiro nomes. Ou melhor: direi apenas um nome à volta do qual congrego todos os demais.
Falo de alguém com 825 anos. Nasceu em Itália no ano de 1181. Toda a sua vida foi um sublime desafio poético que provinha de uma apurada sensibilidade a transbordar em demasias de amor. Há duas palavras para o seu retrato: vigor e ternura. No dizer de Chesterton "foi o único democrata sincero deste mundo". Tendo ficado cego, numa viagem ao Egipto, ditou aos seus companheiros ou jograis de Deus, dois anos antes de falecer,uma das maravilhas poéticas da Literatura Mundial: "O Cântico das Criaturas" ou vulgarmente dito "O Cântico do Irmão Sol". Falo de S. Francisco de Assis. Perdura na minha sensibilidade e no meu pensamento como um paradigma ou ícone.
Com Francisco de Assis aprendi a ter uma alma de vidro e a dizer o essencial em "poucas e simples palavras".
A terminar e em louvor da Poesia: há palavras que desejam a nossa inocência de ser.
Com alegria cito uma mulher, a escritora Ana Teresa Pereira: "Todos nós precisamos de uns 10% de esperança para continuar a escrever ou para amar outra vez".


(Palavras de agradecimento proferidas por J. Alberto de Oliveira no lançamento de O SOM APROXIMATIVO, em 20/04/2005, na FNAC, Matosinhos)

 

6.9.20

O FERMENTO DA NASCÊNCIA



As mães ainda são uma espécie de princípio feminino do mundo.
Ou talvez o fermento da nascência.

Às mães chamarei fermento da vida crescendo.

Para os antigos
o fermento era o crescente.

Aquele punhado de massa que ficava duma fornada
e que servia para levedar a massa da fornada seguinte.

O que significa a ternura quando a mãe chama?
Que os filhos são o argumento mais sensitivo e filial.

J. Alberto de Oliveira



24.8.20

CAMÉLIA ESCOLHIDA





Sei de uma camélia escolhida
e sonhada

em noites perfeitas.

Dela vêm o dom e a ciência
de enxamear o silêncio

com palavras raras.

Aquelas mesmas palavras
que ninguém diz

com medo ou receio
de revelar segredos antigos.

J. Alberto de Oliveira

17.8.20

ALGUÉM PASSA






Pela nudez da alba
sem muros nem portas

alguém passa.

Alguém recorta
nos lenços do ar

furtivas lembranças.

Quem passa
em nada se demora.

Alguém passa
e avisa onde se troca

um punho de palavras
pelo aprumo das rosas.

J. Alberto de Oliveira

9.8.20

UMA IDEIA EM CHAMAS





Na minha mão esquerda
há uma ideia em chamas.

Na minha mão esquerda
uma pedra em rodopio
                                  
espera acção e desvarios.

Com a pedra acesa
hei-de quebrar a noite
                                  
e os vidros lisos da casa
de altas janelas ao luar.

J. Alberto de Oliveira

1.8.20

AO SUBIR A ESCADA





Ao subir a escada
escolhi três bagos

de um sopro só.

Três bagos maduros
de sumo e sol.

Três nós de sangue
e pólen em botão.

Três contas de ouro
ao alcance da mão.

J. Alberto de Oliveira

28.7.20

O POEMA NA VIDA





Se o tempo é breve
porque não há-de ser curto

e muito leve
o poema na vida e no papel?

J. Alberto de Oliveira

20.7.20

TRÊS QUADRAS





Subi às serras mais altas,
Subi às altas varandas.
Já que te não vejo aqui
Vejo por onde tu andas.


Esta noite foi de orvalho,
De orvalho em redor do poço.
Tudo se pôs a florir
Menos o meu cravo roxo.


A cana verde no monte
É sinal de fonte haver.
E por cá eu a penar
Sem ter com quem ir beber.

J. Alberto de Oliveira

12.7.20

ESCULTURA ASCENSIONAL





Escultura ascensional
ao alcance do mar.

Escultura branca
dada aos ventos.

Escultura lisa e livre
ao alcance da luz
mesmo em declive.

Escultura de espelhos
e de tudo um nada
aos olhos do mundo.

Escultura ascensional
sem esquerda nem direita.

Sem norte nem sul
ao rés de linhas sem defeito.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Escultura: Pedro Cabrita Reis - Leça da Palmeira


7.7.20

FULGOR DE JULHO





Os dias atados ao sol
suscitam molhos

de trigo maduro.

São feixes
do fulgor de Julho.

Tanto são de ontem
como são de hoje.

Evocam molhos
de oiro puro

sem joio nem restolho.

J. Alberto de Oliveira

Imagem - Campo de colheita de trigo - Van Gogh

29.6.20

FRUITOS SILVESTRES





Confundir o poema intenso
com os desatinos da vida

ou trocar fruitos silvestres
por um só verso de beijos?

Diz-se à boca cheia
que os primores da natureza
alumiam o desejo e a mesa.

Consta que no silêncio
mais escuso do arvoredo
os fruitos são cantantes.

Sabem a delícias altas.

J. Alberto de Oliveira

23.6.20

O ROXO





Uma estância de fogo
exalta o roxo.

Canta em dor calada.

Com sílabas contadas
desafia a cor

de seu triste clamor.

Furtiva ressoa a fala 
do amor rente à chama.

J. Alberto de Oliveira

16.6.20

DE NOITE





De noite não sei falar.
Desatino para atrair o sopro

de muitos nomes
que vagueiam lá fora
entre enigmas e o mar calado.

A mão que me abre a porta
sangrou no meio do orvalho.

J. Alberto de Oliveira



9.6.20

LENÇO DE SETEMBRO





A tua mão impaciente
de nudez

abriu-me a porta
que dá para a história

dum lenço de Setembro.

Hei-de pô-lo ao peito
como se fosse uma rosa.

J. Alberto de Oliveira

2.6.20

A MINHA LINHAGEM




Eu sei que a minha linhagem
foi tecida com danças musicais
e linho à mistura.

Eu sei que é difícil
e desnuda a substância
de todo e qualquer aedo.

Eu sei que é absurdo
o ofício desta sorte minha.

Mas que hei-de fazer
contra os desatinos

de um inflexível destino?

J. Alberto de Oliveira