"MEMÓRIAS DE
UMA AULA NO LICEU DE SETÚBAL"
por Hélida Carvalho
Santos: - Barreiro, 4 Out. 1967
Revista Visão, 5 de
Outubro de 2011
Segundo dia de aulas. Continua o desassossego, com o pessoal a trocar beijos,
abraços e confidências, depois desta longa separação que foram 3 meses e meio
de férias. Estávamos todos fartos do verão, com saudades uns dos outros. A sala
é a mesma do ano passado, no 1º andar e cheirava a nova, tudo encerado e
polido, apesar do material já ser mais do que velho. Somos o 7.º A e como não
chumbou nem veio ninguém de novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado.
Eu sou o n.º 34, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás,
que é o lugar dos mais altos.
Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um
professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que
veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política.
Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente
porque dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmente uma vaga ideia de
ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da
cantoria se por causa da política. A Inês contou que ouviu o pai comentar, em
casa, que o homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde
passa. Ela diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser
comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza. Quando entrou na
sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite da falta. Entrou
por ali a dentro, todo despenteado, com uma gabardine na mão e enquanto a
atirava para cima da secretária, perguntou-nos:
– Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a
outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou
chatear.
Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a
imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras
palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam a cativar toda a
gente. A Carolina virou-se para trás e disse-me que já o tinha visto na
televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o rosto não me era estranho. É
alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de perfeição e é
bem parecido, digamos que um homem interessante para se olhar. O Artur
soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho.
Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto,
rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em silêncio, a olhar
o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas.
Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com
os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o bichanar
foi subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo acordado.
Outro qualquer professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças,
mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se
importasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto esteve
ausente, era tão distante que mais parecia ter-se, efectivamente, evadido da
sala. Quando recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado, já tinha
ganho o primeiro round de simpatia.
Depois, veio o mais surpreendente:
– Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo
dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não
foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.
Gargalhada geral.
– Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas,
aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me
tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me
interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou
para isso. Não entro em palhaçadas.
Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou
impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo,
simpático.
– Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente
inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um
minuto do meu estudo com esta porcaria.
Começámos a olhar uns para os outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado
pela frente um professor com tamanha ousadia.
– Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como
noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na
prática não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive
numa democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana
e cruel.
Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o sorriso e
estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele
homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os
dias, aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o
repetirmos na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente
como uma nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa.
– Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem
quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria. Mas,
atenção, vocês são outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no
final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem
entrar na Faculdade. Isso, vocês têm que fazer. Estudar. Para
serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um onde estiver,
esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos
filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo
país. Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha,
basta estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale
nada. Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas
as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a
saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime,
países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos,
cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim, outras
coisas que a seu tempo vos ensinarei.
Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa
cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros,
mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta
do conhecimento, da cultura e da verdade. Vou ensinar-lhes que, além
fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram
a esta ditadura de miséria social e cultural.
Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter
notas para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas do vosso
livro que terão que ter a paciência de estudar. A matéria é uma falsidade
do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingirem os vossos mais
altos objectivos. Têm que estudar. Se quiserem copiar é com vocês,
não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem trazer o livro e copiar,
é uma decisão vossa, no entanto acho que devem começar a endireitar este país
no sentido da honestidade, sim porque o nosso país é um país de bufos, de
corruptos e de vigaristas.
Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos, em
qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre que mostrar o que
somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros.
Por isso, acho que não devem copiar. Há que criar princípios de
honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens e mulheres de
Portugal. Não concordam? Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos
na próxima aula.
Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que fenómeno
é este que aterrou em Setúbal? Já me esquecia de escrever. Esta ave
rara, o nosso professor de Organização Política, chama-se - chamava-se - Zeca
Afonso.»