5.5.21

DEPOIS DO INVERNO


 

Ainda me lembro da jubilosa manhã

em que vi

a primeira rosa que floria depois do inverno.

 

A caminho da escola havia frescura.

 

Arranquei à rosa uma pétala orvalhada.

Limpei as gotas do relento.

 

Abri ao acaso o meu livro de leitura

e fechei-a ali dentro

no silêncio  das palavras que aprendia.

 

Depois do inverno

talvez tudo seja mais verdade que mentira.

 

Improváveis sejam as palavras

e as rosas que ainda soletro.

J. Alberto de Oliveira


29.4.21

ZECA AFONSO


 

"MEMÓRIAS DE UMA AULA NO LICEU DE SETÚBAL"

por Hélida Carvalho Santos: - Barreiro, 4 Out. 1967

Revista Visão, 5 de Outubro de 2011  


Segundo dia de aulas. Continua o desassossego, com o pessoal a trocar beijos, abraços e confidências, depois desta longa separação que foram 3 meses e meio de férias. Estávamos todos fartos do verão, com saudades uns dos outros. A sala é a mesma do ano passado, no 1º andar e cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar do material já ser mais do que velho. Somos o 7.º A e como não chumbou nem veio ninguém de novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado. Eu sou o n.º 34, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que é o lugar dos mais altos. 

Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política. 

Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente porque dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmente uma vaga ideia de ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da cantoria se por causa da política. A Inês contou que ouviu o pai comentar, em casa, que o homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza. Quando entrou na sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite da falta. Entrou por ali a dentro, todo despenteado, com uma gabardine na mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:
– Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também não vos vou chatear. 

Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam a cativar toda a gente. A Carolina virou-se para trás e disse-me que já o tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o rosto não me era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que um homem interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho. Depois das primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala, impecavelmente limpas. 

Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o bichanar foi subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo acordado. Outro qualquer professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças, mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se importasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto esteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se, efectivamente, evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado, já tinha ganho o primeiro round de simpatia. 

Depois, veio o mais surpreendente:
– Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu. 

Gargalhada geral. 

– Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas. 

Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo, simpático.

– Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria. 

Começámos a olhar uns para os outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado pela frente um professor com tamanha ousadia. 

– Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na prática não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive numa democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana e cruel. 

Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o sorriso e estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os dias, aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o repetirmos na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente como uma nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa. 

– Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem quero perceber.  Estou-me nas tintas para esta porcaria.  Mas, atenção, vocês são outra coisa.  Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem entrar na Faculdade.  Isso, vocês têm que fazer.  Estudar.  Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos filhos.  Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo país.  Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta estudarem umas horas e empinam isto num instante.  Isto não vale nada.  Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral.  Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei. 

Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça.  O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam.  Vou abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade.  Vou ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural. 

Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter notas para ir a exame.  O ponto que farei será com perguntas do vosso livro que terão que ter a paciência de estudar.  A matéria é uma falsidade do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingirem os vossos mais altos objectivos.  Têm que estudar.  Se quiserem copiar é com vocês, não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem trazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho que devem começar a endireitar este país no sentido da honestidade, sim porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas. 

Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos, em qualquer quadrante da sociedade.  Nós temos sempre que mostrar o que somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros.  Por isso, acho que não devem copiar.  Há que criar princípios de honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens e mulheres de Portugal.  Não concordam?  Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula. 

Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que fenómeno é este que aterrou em Setúbal?  Já me esquecia de escrever.  Esta ave rara, o nosso professor de Organização Política, chama-se - chamava-se - Zeca Afonso.»

 ZECA AFONSO - Nasceu 02.08.1929 - Faleceu 23.02.1987  

 


25.4.21

GRÂNDOLA VILA MORENA



Abril ou Novembro.


Todos os meses

são de Grândola Vila Morena!

J. Alberto de Oliveira

20.4.21

O RASCUNHO



Há um exercício adjacente à inspiração: o rascunho.

Eu não escrevo sem o esboço corrigido até à exaustão, porque me engano muito na conjugação dos verbos. Baralho tudo: os tempos, os modos, os aspectos, as pessoas.

É uma agrura que me assiste e justifica esta ideia antiga: os verbos deveriam ser ditos e escritos apenas no infinitivo.

O infinito e depois o infinitivo dos verbos têm muito a ver com a minha infância. Quando eu contemplava o céu em noites estreladas, o espanto e a candura pediam-me palavras de infinitude.

A natureza verbal no infinitivo é simples, justa e firme.

Suscita a amplidão. Alude a uma substância pura.

J. Alberto de Oliveira


 

12.4.21

O PRAZER DO TEXTO


 

O prazer do texto principia pela substituição de uma palavra por outra.

Pela rasura de um parágrafo. 

Pela inversão dos sentidos.

Pela troca de nomes vulgares por outros cheios de mistério.

Pela invenção de algumas figuras.

Pelo afastamento de um objecto.

Pela atenção à vírgula com direito ao seu lugar.

Pela troca da rua por um beco sem saída.

Pela fuga a um sítio quotidiano.

Apesar do esforço, o texto nunca me satisfaz.

A perfeição do texto é difícil.

J. Alberto de Oliveira

Fotografia: J. A. de Oliveira


3.4.21

O VENTO NÃO ENVELHECE


 

Adivinho desde menino que o vento não envelhece.

Dura o tempo todo.

Eu sei que o vento gostou sempre de me instruir

com palavras do mansinho e palavras incendiáveis.

Eu teria uns setes anos de idade.

Nesse dia eu regressava da escola sozinho e meditabundo.

Quase de súbito o vento começou a endiabrar-se.

Esfarrapava as nuvens negras e as últimas folhas do outono.

O vento quando corre furibundo parece que vai a todos os buracos escuros.

Com a língua seca eu lambia o medo.

Os olhos começaram a ficar em nó cego.

O tempo e o vento mediam-me os passos pensativos.

A alma afinava a minha pobreza de criança.

Os relâmpagos alumiavam o mundo.

Só por Deus eu ouvia o vento e trovejos de pavor e susto.

Por bem encontrei um moinho.

Entrei cerrando a porta.

Havia ali um saco de serapilheira.

Deite-me nele e adormeci ao ritmo da mó a moer grãos de milho.

Quando fui para casa o dia estava no fim e o vento soprava macio.

J. Alberto de Oliveira


26.3.21

EM SONHO


Por sorte, em sonho, encontrei um marinheiro

que me contou diversas visões e vivências.

Disse, por exemplo,

que já ninguém leva uma carta fechada

para ser lida no alto mar.

Que os segredos ficam todos em terra

num círculo de silêncio e tristeza até ao regresso.

Que o desejo de partir é igual ao desejo de voltar.

Que todos os marinheiros vão pobres

e todos voltam cheios de mistérios e perguntas.

Disse-me ainda que no alto mar

a cor do tempo umas vezes é salina e azul.

Outras vezes é de névoa profunda.

Que os movimentos da água

esboçam uma beleza antiga.

 

Pelo que que vim a saber

depois do sonho

 

o marinheiro não mentia.

J. Alberto de Oliveira

 

20.3.21

ESCREVER PARA QUÊ?


Escrevo para que o lugar vazio

depois de mim perdure no papel.

 

Escrevo para que o sítio donde terei de sair

 

permaneça nos cadernos do universo  

com letras da triste e leda memória de mim.

J. Alberto de Oliveira

 

14.3.21

PORQUÊ?


 

Porquê?

Porque se torna muito difícil e funesto

explicar

a certas pessoas como se abre

a primeira rosa depois do inverno?

J. Alberto de Oliveira


6.3.21

NO TEMPO DAS FÁBULAS


 

No tempo em que os animais falavam

não havia escrita.

Não havia letras nem lápis nem papel.

 

Só existia a caligrafia do vento

nas folhas das árvores

nas areias do deserto

nas ondas do mar

no estremecer luzente do orvalho.

 

No tempo em que os animais falavam

os bichos conheciam as ideias dos humanos

e diziam tudo o que pensavam acerca de nós.

 

Como os animais já não falam

triunfam as fraudes e bazófias.

J. Alberto de Oliveira


22.2.21

DIADORIM


 

Diadorim.

O nome escrito e narrado por João Guimarães Rosa

em Grande Sertão: Veredas.

 

Diadorim. 

Uma figura enigmaticamente iluminante

de olhos muito verdes.

 

Ser Diadorim é inesperado e desassossegante.

 

Um nome.

Nome e figura não condizem com o real quotidiano.

É um nome cheio de neblina perpetual.

 

Diadorim é o nome fulgor diverso.

Um poema de inspiração contínua.

 

Dizer Diadorim suscita um não sei quê.

 

Diadorim em seu desígnio e sonoridade

é o poema mais pequeno da língua portuguesa.

J. Alberto de Oliveira

18.2.21

FORMOSOS SÃO OS OLHOS






 

Formosos são os olhos

que principiam

 

no amor sonoro

das marés vivas.

 

Primorosos são os olhos

que luzem na flor de sal.

 

Que me enleiam a voz

com verdes algas do mar.

J. Alberto de Oliveira


11.2.21

DUAS CORRENTES


Todos somos atravessados por duas correntes essenciais.

A corrente humana que nos engrandece, nos prolonga e nos eleva à excelsitude.

E a corrente animal que nos faz sofrer e mata como a todos os seres vivos do universo.

J. Alberto de Oliveira

 

4.2.21

OS TELHADOS DA VIDA


 

É perigoso amar

onde são de vidro

 

fuligem

 

cinza e sal

os telhados da vida.

 

É negro e perigoso

morar

 

onde se morre de pavor.

J. Alberto de Oliveira


28.1.21

CADÊNCIA DE AFECTOS


 

São magníficas as regras 

que inspiram a intenção 


imprevisível da música. 


Que se apuram 

numa cadência de afectos.

J. Alberto de Oliveira


23.1.21

UM ARGUMENTO


 

A fonte é o ponto

mais sensível da terra

 

onde posso beber

à hora de ir embora.

 

Entre mim e a fonte

 

a sede

é motivo de horas cegas.

 

Um argumento da boca

às vezes tão ávida

 

a pedir água.

J. Alberto de Oliveira


15.1.21

O ESBOÇO



 

Nas linhas que me desenham

o esboço é da casa da criação.

 

Da casa onde havia

um cendal de linho

 

mais antigo que o amor.

 

A minha alma crescia no miolo

do pão que sabia a leite quente.

 

Na mesa do pão tudo luzia. 

 

Todas as letras do anoitecer

entravam pela cancela amiga

 

que também para ti se abria.

J. Alberto de Oliveira


6.1.21

LENDO CESÁRIO VERDE



Devagar o bulício das ruas

entra no poente.

 

Devagar se aprende

a soletrar

 

as horas mortas

e a maresia defuntal.

 

Devagar tudo se mistura

com o sentimento

 

dum tísico poeta ocidental.

J. Alberto de Oliveira


 

31.12.20

OS LAMEIROS


 

Os lameiros são espelhos de água e de inverno.

As árvores sem folhas e as nuvens sem rasgões para o azul do céu, aludem ao abandono.

Há pássaros que não emigram. Persistem iguais aos seus antepassados de há trezentos anos.

Limitam-se a viver. Pouco ou nada cantam. Piam e voam de ramo em ramo.

 

O cenário, que vejo com estes olhos que a terra me há-de comer, é todo interior.

 

Os lameiros, a água, as árvores, as nuvens espessas, a erva e os pássaros transformam-se em espírito absorto e pensativo.

 

Este é o seu destino, expansivo até ao fim dos tempos. Esta é a sintaxe do sentimento obscurecido pelo rigor de geadas e frios ventos.

J. Alberto de Oliveira

22.12.20

A DIVINAL CLARIDADE - Gil Vicente


 

A divinal claridade

Seja em vosso entendimento,

E vos dê conhecimento

De sua natividade.


Gil Vicente - Auto da Fé - 1510