30.9.12

PALAVRAS E HORAS RESPIRADAS





Brinca o fogo com a água
quando o brilho azul do ar

e as varas vegetais da terra
me rasgam a língua.

Quando me ouves a soletrar
palavras e horas respiradas.

J. Alberto de Oliveira


14.9.12

NO ÂNGULO DA MESA




No ângulo da mesa há poesia e álcool
iluminações e paraísos perdidos.

Há uma espécie de férias de verão
no inferno dos poetas malditos.

Lá estão Rimbaud e Verlaine
com seus versos saturninos.

Fatin-Latour ao retratar o olhar
dos poetas e os seus livros

fixa no tempo zero da pintura
o invisível dos versos e do vinho.

Ao contemplar o rosto dos poetas
a vida entra pela natureza adentro.

A natureza ávida dos que viveram.

J. Alberto de Oliveira




ÁGUA SEM POSSE




Naquela fonte muito antiga, desde 1858 que perdura a pedra onde se escreveu: agoa sem posse.
Magnífico aviso acerca do elemento que é tão munificente como imprescindível.
Das nascentes a água desce livre ao encontro da sede.

Na inscrição se mostra e lembra que a água é para fluir como dádiva, como substância do feminino, viva, pura e corredia.

A pedra, assim escrita, é um sinal de vigilância para os seres viventes e, sobretudo, para os poetas, quando são eles a razão e a fonte do verbo sem posse.


APOSTILA

Quando fotografei a inscrição de 1885, agoa sem nome, ocorreu-me o texto que imediatamente redigi e mostrei a várias pessoas. Um jurista leu e lembrou: “aquelas raras inscrições eram colocadas a indicar a posse pública, porque havia muita água de propriedade privada”.
Sim. É a causa real que eu muito bem conhecia. Mas, fazendo uso do olhar contemplativo, estético e amantivo, escrevi o que escrevi.
Evidenciei a leitura estética, recusando o sentido materialmente jurídico.
Compus o texto que os olhos me pediam.
Sem o dom poético o olhar torna-se estéril, involutivo e rasteiro.


J. Alberto de Oliveira




NARRATIVA A SÉPIA





Com as vogais da infância me sento à mesa.
Tomo o pão molhado no mel e bebo o leite.

Exposto ao lume no ângulo do lar aceso
convoco a fadiga do entardecer

para depois
adormecer na pausa do melhor beijo.

J. Alberto de Oliveira

      

24.8.12

PURO E SIMPLES




O ritmo feliz do azul
a articular os nomes.

O movimento jubiloso
do sol a doer no pulso.

O oiro ao rubro
a entardecer o dia.

A alma e sua leveza
a alumiar o invisível.

J. Alberto de Oliveira





23.7.12

SETEMBRO ADENTRO




A minha vida entrou nua
e crua

por setembro adentro.

A minha vida arrebatada
à respiração do mundo

e ao sopro intuitivo
de Deus.

Na primeira frase
da língua arderam

os lábios e a saliva.

A minha vida a entrar 

por setembro adentro
foi um dom superlativo.

J. Alberto de Oliveira 

12.7.12

A NATUREZA DA ÁGUA




Para beber a natureza da água
ouve primeiro um segredo.

Intui os sentidos da boca ávida
ou sonha perto do silêncio.

No dialecto arcaico da infância
depura as imagens que lês.

E soletra docemente,
soletra muitíssimo devagar

o causa preciosa e amante
da lídima natureza da água.

J. Alberto de Oliveira - ENTREPOEMAS (2014) – poema corrigido








11.7.12

PRELÚDIOS DE LEITURA







1-
Pode o segredo
sair de si mesmo

e pousar nos olhos
enquanto dormes?

2-
Em forma de lenço
aberto ao vento

o sangue me alumbra.

É coração de estrela 
a rubra cor de outubro.

3-
O relâmpago invisível
rasga as telas da vida.

Soletrada em contraluz
a poesia alucina

as águas de leitura.

J. Alberto de Oliveira

12.6.12

TEORIA DO VERBO AMAR




O espaço do verbo amar não tem sombras.
Esplende por inteiro.

Chamo-lhe verbo amar.
E, por ser a evidência da bondade profunda e de suas incidências, quem o sabe conjugar?

Chamo-lhe verbo amar por ser a soma de todos os modos e tempos do tempo.

J. Alberto de Oliveira

11.6.12

AS PRIMEIRAS FRASES






Quando eu era criança, os nomes que dizia, todos ou quase todos, eram incompletos. Somente o volume e as formas das coisas permaneciam inteiras nos meus olhos.

Com os objectos do mundo, na sua complementaridade justa e geométrica, eu compunha as primeiras frases, incautas, frágeis e breves.

Eram frases de fulgor, lúdicas, miríficas e matinais.

J. Alberto de Oliveira

29.5.12

MENINA E MOÇA




Varrido pelo vento e melancolia, o entardecer talvez fosse a pronúncia de um nome perdido.
Talvez fosse o começo da lembrança:
Menina e moça me levaram de casa de meus pais para longes terras; e qual fosse a causa dessa minha levada, era pequena, não na soube.

J. Alberto de Oliveira

15.5.12

A TELA SENSÍVEL






Romper a malha
e não ficar.

Romper o tecido
e passar.

Romper a tela
sensível

e passar
através dela

à palavra viva.

Àquela ideia
que não fala.

Que flui inteira.

J. Alberto de Oliveira

14.5.12

MUITO PERTO DE À NOITE





Muito perto de à noite
três vezes disseste

em cadência gradativa
o lume o lume o lume.

Três vezes estremeceste
deixando cair

entre a cinza e fagulhas

o som verbal do silêncio
tecido com linho puro 

pela tua mão de escrever.

J. Alberto de Oliveira

2.5.12

A LEMBRANÇA MAIS ANTIGA




Ia haver o quê? Um sarau em torno do linho com danças e cantares?
O que ia haver no alpendre agrícola da Casa de Formozem?
Luzia o luar nessa noite de verão? Não sei.
Eu era um menino que tinha apenas dois anos de vida bem medida.
Eu só me lembro que havia o quase escuro a encher o alpendre.
Lembro-me, e parece que ainda estou ver: alguém subiu para um banco.
Com o simples mover da mão, o homem fez com que subitamente
a lâmpada, suspensa num barrote, iluminasse o alpendre.
Eu só me lembro e sei que foi magnífico o instante
da lâmpada que se tornou viva.
Com o toque da luz no limiar do escuro, eu comecei a ser contemplativo.

J. Alberto de Oliveira 

27.4.12

O LADO ESQUERDO




Sempre sonhei para o lado ofegante
para o lado mais rubro das coisas.

Sonho sempre para o lado esquerdo
de quem entra no meu sono

com frases rutilantes e segredos.

J. Alberto de Oliveira



23.4.12

FLOR ILUMINANTE




Ia Lídia pelo jardim adentro
e deu com a ígnea flor

tema de seus pensamentos.

Ia Lídia colher delícias e flores
e veio com uma rosa

flor iluminante de seus amores. 

J. Alberto de Oliveira

2.4.12

PRELÚDIO MÍSTICO




Por uma pequena frase
de júbilo puríssimo

as primícias
do crepúsculo ardem.

O linho do silêncio
é místico e precioso.

O beijo de um segredo
alumbra a flor do sono. 

J. Alberto de Oliveira

26.3.12

VERSOS AVULSOS






São palavras feridas
nas arestas da pedra

as palavras que secam
meus olhos e a língua.

São elas o pulso febril
de versos avulsos.

Meus versos de medir
a vida a prumo

com varas de lápis-lazúli.

J. Alberto de Oliveira

22.3.12

INVERTER A FALA





Trabalho numa oficina da linguagem
com substâncias delicadíssimas.

Lido com palavras superlativas
e sinais de pausa e silêncios.

O meu ofício é inverter a fala
com o lápis da jubilação.

Começo pela argila de mim mesmo
e termino no oiro da alumiação.

J. Alberto de Oliveira

14.3.12

PUNTI LUMINOSI




Por veredas e baldios de outrora 
o sentido era voltar sempre em desatino.

Dizendo de outro modo:

na infância o pensamento 
era um ponto de incêndios.

O cerne e vórtice 
donde subiam faúlhas de ínvias letras.

J. Alberto de Oliveira