A divinal claridade
Seja em vosso entendimento,
E vos dê conhecimento
De sua natividade.
Gil Vicente - Auto da Fé - 1510
A divinal claridade
Seja em vosso entendimento,
E vos dê conhecimento
De sua natividade.
Gil Vicente - Auto da Fé - 1510
Talvez um dia se possa ler
no imo sensível da poesia
a
sorte de horas somadas
ao
acaso de palavras extremas.
Talvez
se possa dizer
que
a poesia é mais funda e viva
que uma ferida tocada pelo sal.
J. Alberto de Oliveira
Se puderdes trabalhar por mim, dai-me de comer e deixai-me pensar
aquilo que nem imaginais.
Deixai-me soletrar o que nem ousais dizer.
Possa eu adivinhar o que nunca haveis de ouvir.
Tenha eu o tempo propício para ver o limiar do invisível e sonhar o nada
que é evidente.
E quando eu tiver fome, trazei um naco de pão, ó companheiros do mundo.
(Texto escrito enquanto ouvia Khatia Buniatishvili ao piano na Casa da
Música, no dia 06/10/2019)
Eu
sou o nó cego do meu próprio nome
disse
o poeta.
E
naquele dia não escreveu mais nenhum verso
ou
argumento da melancolia.
Saiu
de casa ao lusco-fusco.
Desceu
ao jardim
e
sentou-se na sua pedra
para
ouvir a arte musical de cores e cotovias.
J. Alberto de Oliveira
impróprio
de registo ou notícia.
Desço
à rua de mala pronta.
Não
perco o passo nem a fronte.
Desço
à rua e faço a travessia
saudando a aragem e as sombras.
J. Alberto de Oliveira
Se eu adormecer no ponto
mais sensível do sono
nunca digas adeus.
Deixa-me primeiro
inventar uma história.
Quero um feixe de frases a
por um cordel de sete nós.
Quero um feixe de frases
que tenham sido atadas
por sete fios de sol.
Também quero um aceno
ao alcance de tudo ou nada.
Um vadio aceno da mão
cheia de versos travessos.
J. Alberto de Oliveira
Imagem: Pablo Picasso
Na
última dobra do linho
a
hora que nos espera
apaga
as coisas visíveis
e
tira-nos o tubo do oxigénio.
Na
última dobra do linho
morre-se
deste modo:
simplesmente
com falta
de
oxigénio e de poesia.
J. Alberto de Oliveira
Se
me perguntares a que horas eu volto para casa
eu
direi que todas as horas são improváveis.
São
lugares incertos os meus pontos de partida.
E
demais a mais faço o caminho em bicos de pés.
Com
os olhos afeitos ao escuro e ao silêncio macio.
J. Alberto de Oliveira
Lunar e profunda era a noite
em que nasci dado ao mundo.
Suspensa a noite unia
o
ar da luz
e o leite de beijos
aos murmúrios em desalinho.
De luxo
era a noite dada
em lídimo nó
ao meu cordão umbilical.
J. Alberto de Oliveira
Fotografia: eclipse lunar (27/07/2018) - Horácio Azevedo
Para compreender o mundo, precisas de companhia equivalente
a sete medidas de farinha-triga com uma pequeníssima porção
de fermento.
E, sobretudo, é necessário que evites o uso e abuso do
quotidiano.
Lembra-te que os jogos de palavras azedam o convívio e a
expectativa do sono.
Olha que há muitas escalas da beleza e da linguagem.
Para subir devagar, não esqueças que as escadas mais
preciosas
são de madeira e suportam mal cargas pesadas.
J. Alberto de Oliveira
Não te afastes da frente
por mais que soprem os ventos.
A voz sem autor
é uma espécie de tela escura.
Não te corrompas
nem te iludas.
Uma camélia com tinta rubra
fia mais fino que o mundo.
J. Alberto de Oliveira
S. Francisco de Assis desafiou a morte
com serenidade e louvor. Contrariamente à maioria dos humanos, que a olham “tão odiosa e terrível”, o Santo
convidou-a a hospedar-se em sua casa: “Bem-vinda
seja – dizia – a minha irmã morte”.
E, para o médico: “Coragem, irmão médico, não receies dizer-me que está próxima a minha
morte, porque ela é para mim a porta da vida”.
E para os irmãos: “Quando me virdes entrar em agonia, outra vez nu me haveis de estender
no chão, como anteontem, e assim morto, deixai-me jazer o tempo que levaria um
homem a percorrer folgadamente uma milha”. (2 Celano, 217)
Possivelmente o tempo que vai da terra à eternidade é o mesmo que demora um homem a fazer a pé 1.609,344 metros, isto é, uma milha.
J. Alberto de Oliveira
Imagem: Alberto Péssimo
Olhos sedentos e
pensativos.
Corpo sedentário e corrompido
por ventos marítimos.
J. Alberto de Oliveira
EQUAÇÃO DE ACORDO COM A RELATIVIDADE
Poema ou Equação?
O que tem mais apuro?
O que é mais belo?
O que é mais profundo?
Selados pela espuma
do sol em declive
os frutos estão maduros.
São do mês Setembro
as primícias
do mel.
O mosto arredonda
rumores entre os dedos.
O ouro em contraponto
liga as frases sentidas
à púrpura nos montes.
J. Alberto de Oliveira
Na margem luminosa
do último sonho
dei contigo em modos
de também sonhar.
Arvoavas no desvão
de uma folha furtiva.
Respiravas para o lado
mais leve do coração.
J. Alberto de Oliveira
(Agradecimento ao Dr. José Ribeiro - Edições Afrontamento;
à FNAC; aos poetas Manuel António Pina e Cláudio Lima; à D,ra Maria Bochicchio;
ao actor Alexandre Falcão; ao Dr. Jorge Coelho).
[…] Agradeço, finalmente,
àquelas e àqueles que são a raiz dos meus exercícios poéticos. Não refiro
nomes. Ou melhor: direi apenas um nome à volta do qual congrego todos os
demais.
Falo de alguém com 825 anos.
Nasceu em Itália no ano de 1181. Toda a sua vida foi um sublime desafio poético
que provinha de uma apurada sensibilidade a transbordar em demasias de amor. Há
duas palavras para o seu retrato: vigor e ternura. No
dizer de Chesterton "foi o único democrata sincero deste mundo".
Tendo ficado cego, numa viagem ao Egipto, ditou aos seus companheiros ou
jograis de Deus, dois anos antes de falecer,uma das maravilhas poéticas da
Literatura Mundial: "O Cântico das Criaturas" ou vulgarmente dito
"O Cântico do Irmão Sol". Falo de S. Francisco de Assis. Perdura na
minha sensibilidade e no meu pensamento como um paradigma ou ícone.
Com Francisco de Assis
aprendi a ter uma alma de vidro e
a dizer o essencial em "poucas e simples palavras".
A terminar e em louvor da
Poesia: há palavras que desejam a
nossa inocência de ser.
Com alegria cito uma mulher,
a escritora Ana Teresa Pereira: "Todos nós precisamos de uns 10% de
esperança para continuar a escrever ou para amar outra vez".
(Palavras de agradecimento proferidas por J. Alberto de Oliveira
no lançamento de O SOM APROXIMATIVO, em 20/04/2005, na FNAC, Matosinhos)