30.5.22

CITANDO SÁ DE MIRANDA


 

Quando o sol é grande


o ar cálido nos olhos

 mostra como ardem


os insectos e as flores.

 

Quando o sol é grande

caem co’a calma as aves

 

em seus mimos e amores.

J. Alberto de Oliveira


19.5.22

LENDO FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO


 

Amor é água antes do fogo.

Ou para mais dizer:

é dor o amor enquanto espera.

 

São apenas dois versos que li

lendo a Fiama.

 

E foi quando escrevi:

 

sei de uma fonte

que muito luzia.

 

Luzia mais que o ar.

 

Eu bebia o fogo

no seu primor

 

e na ideia da água.

J. Alberto de Oliveira


13.5.22

A TORRE DA MINHA ALDEIA




 

Não sei quem me espera.

Não sei quem se esconde

 

por dentro do meu nome.

 

Não sei quem fez do sol

a torre da minha aldeia.

 

Não sei e não sei e não sei

nem quero saber.

 

Só peço

para não me perder cego.

J. Alberto de Oliveira


3.5.22

O SONHO QUE TIVE


 

Nunca transcrevo os sonhos que me visitam durante o sono. Deixo que eles se diluam no olvido. Mas o sonho, o que tive a última noite, aqui fica.

Sonhei que detive no ar uma ave muito, muito pequenina. Esvoaçava à minha volta. Era belíssima e de cor amarela. Tinha os olhos muito inquietos e meigos. Queria voar. Mas eu só imaginava uma gaiola e comida para lhe dar. Eu queria que ficasse comigo todos os dias para todos os dias a ver.

J. Alberto de Oliveira


22.4.22

AS GOTAS PRIMORDIAIS




 

Nos vidros da minha janela

virada a sul

as gotas primordiais são da chuva.

 

Não pesam mais que o ar

da sua própria luz.

 

Escorrem como se fossem lágrimas

a cair nos lenços da alma.

 

Escorrem porque é de vidro e névoa

o dom precioso da minha janela.

J. Alberto de Oliveira


11.4.22

O REDIVIVO EM TRÊS DEGRAUS


1 - ENREDO

 

Madalena foi ao sepulcro muito cedo. Ainda era escura a madrugada.

Madalena olhou para dentro do rochedo e viu que estava limpo e vazio. Ainda bem, porque assim ela passa de uma cisma a outra.

Madalena esquece num relâmpago a palidez do corpo deixado no abismo da morte e principia a intuir um corpo redivivo, iluminante.

Em alvoroço ela correu para o mundo. Foi contar tudo.

Madalena correu ao ritmo da memória tocada por palavras novas.

Pelo caminho, Madalena aprendeu a conjugar o verbo ressuscitar com ressonâncias vivas, rutilantes.

 

 

2 - QUASI-POEMA

 

A ressuscitação foi um sublime flash divino.

Um instante de vigor na presença de anjos.

 

E depois, só depois, foi dito aos humanos: “ressuscitou!”

 

O redivivo mostrou-se e falou a quem procurava o seu corpo,

seu corpo de súbito renascido para o alvoroço do encontro.

 

O redivivo falou primeiro à mulher que saiu de casa

pelo silêncio da madrugada ainda escura.

 

Superando a distância, as encruzilhadas e as horas tardias,

a mulher antecipou-se aos ruídos do mundo.

 

Venceu a negrura, a morte e o vazio.

 

 

3 - POEMA

 

Para dentro da pedra

escorre em ferida

o silêncio da pergunta

 

onde o puseram

o corpo que tanto procuro?

 

Para dentro da pedra

se debruça

o pensamento da mulher

 

apurando os sentidos do amor

com perfumes de lume novo.

 J. Alberto de Oliveira


 

5.4.22

A DOURADA MANSIDÃO


 

Depois de lidas uma a uma

todas as letras do dia

 

só me fica a dourada mansidão.


Aquela pausa do alvoroço

que adivinho nos olhos

 

e no espírito adormecido

das criaturas soleníssimas

 

logo após o pôr do sol.

J, Alberto de Oliveira


27.3.22

O DICIONÁRIO DO AMOR


 

Luís de Camões desejava e sentia tudo o que seus olhos viam:

o rosto e o corpo da amada, uma bonina, as ondas do mar.

Escrevia as suas cartas, estâncias, versos e rimas como quem respira.

Com arte e génio Luís de Camões fixou na língua portuguesa

as palavras

que não podem ser esquecidas.

 

É urgente ler o Poeta para que nunca se perca a cadência,

as sonoridades e a alma da melancolia camoniana.

Luís de Camões no seu impulso irónico, brigão e amoroso,

imaginava o dicionário que nos falta:

o dicionário do amor.

Um dicionário onde a fala é ditosa e preciosa. Onde o sensível, épica e liricamente, se mostra e manifesta.

J. Alberto de Oliveira

12.3.22

NO FIM DA TRAVESSIA




 

Antes de fechar os olhos

lavem-me as feridas

 

ainda com sangue à mostra.

 

No fim da travessia

não escrevam editais

 

com piedosos propósitos.

 

Limpem-me de tudo

com sete versos

 

de água corredia e nua.

J. Alberto de Oliveira


27.2.22

AS PRIMÍCIAS DA ALTURA




Que a tua boca aturdida

pela mudez da noite

 

dite palavras silenciosas.

 

Depois

vai à janela de casa.

 

Acena a quem passa

 

com a sua alma perdida

entre linhas de versos nus.

 

No escuro do relento

estremeçam

 

todas as primícias da altura.

J. Alberto de Oliveira


19.2.22

ÀS PRIMEIRAS HORAS


 

Às primeiras horas do nosso pão de cada dia

escrevo em folhas alumiadas pelo fogo.

 

Escrevo sacudindo o entulho

para não deixar que alguma vez ele me cubra.

 

Escrevo desatinos e seu alvoroço

subtraindo ao céu-da-boca frases antigas

 

que ressoam na garganta ao rubro.

J. Alberto de Oliveira

16.2.22

UM SEGREDO




Sei um segredo

que vou deixar para depois.

 

É uma lembrança no mar

sonhada fora do tempo.

 

Vale tudo ou nada.

Não tem som nem letras.

J. Alberto de Oliveira


8.2.22

DAS NOITES SEM LUA


Na mansidão escura

das noites sem lua

 

a fala das estrelas

era pertinente  e altiva.

 

Que me queriam as estrelas?

Que me diziam em surdina?

 

Incertezas e a cinza da vida.

J. Alberto de Oliveira


1.2.22

NO MEU SURRÃO DE SONHOS



No meu surrão de sonhos

guardo o pão e versos.

 

No meu surrão de fantasias

escondo alguns rascunhos.


Nele abrigo papéis velhos

de histórias para os amigos.

 

No meu surrão de sonhos

há coisas que nem adivinhas.

J. Alberto de Oliveira


 

24.1.22

SE EU ADORMECER


 

Se eu adormecer no ponto

mais sensível do sono


nunca digas adeus.


Deixa-me primeiro

inventar uma história.


Quero um feixe de frases


que tenham sido atadas

por sete fios de sol.


Também quero um aceno

ao alcance de tudo ou nada.


Um vadio aceno da mão

cheia de versos travessos.

J. Alberto de Oliveira



15.1.22

SÓ DEPOIS FECHA A PORTA


 

Traz uma rosa.

Entra nos meus segredos.

 

Deixa o pensamento

e seus truques lá fora.

 

Depois

e só depois fecha a porta.

J. Aberto de Oliveira


7.1.22

DA ALMA DE CHOPIN


 

Quando abriste oh lys

o dicionário na palavra batimento

 

eu não sabia o que vinhas inspirar.

 

Como não disseste nada

eu pensei em batimentos da alma.

 

Em batimentos do coração e outros.

 

Eu não sei mas hei-de saber

se umas tantas notas musicais

 

também são batimentos

 

ou tão só movimento de partículas

da alma de Chopin.

 

Da alma no coração

abrasivo dos sentimentos.

 J. Alberto de Oliveira


30.12.21

À LUZ DA CANDEIA


Por mais que o vento

sopre lá fora

 

o leite e o mel resplendem

nos ângulos da cozinha.

 

O leite e o mel escorrem

à luz da candeia.

 

Na sua recompensa

não há sombras nem medo

 

O pavio dá luz inteira. 

J. Alberto de Oliveira

 

22.12.21

EM LANCE DE ALMA


 

Sê complacente comigo
oh Dional.

Dita-me palavras suspensas
da língua e do ar em rodopio.

Ensina-me a escrever
o que eu nunca soube dizer.

E por fim
sem nada em que pensar

recita em lance de alma
a cadência

de uma frase musical.

J. Alberto de Oliveira

Foto: Renato Roque

11.12.21

A AGULHA PERDIDA


Neste palheiro imenso

de pronúncias diversas

 

o poeta procura a difícil

agulha perdida.

 

Procura o verso

rigorosamente certo.

 

O som das palavras

exactas na sua medida.

J. Alberto de Oliveira

Fotografia: José Miguel Reis

 

2.12.21

A MÍSTICA ROSA


 

Por quem devo saber 

o modo como a rosa

 

é o tempo de si mesma

entre o sol e a vida?

 

A quem devo dizer 

que a mística rosa

 

por amor do seu nome

ostenta a glória de ser?

J. Alberto de Oliveira


30.11.21

O QUE VINHA DO MAR



 

Sentada na soleira da porta, a mulher recebia o que vinha do mar.

O visível e o invisível fluíam no seu olhar contemplativo.
Entre leves sombras de névoa e luz, entre sons de linhas de água e a pronúncia de algumas frases, parecia-lhe ouvir musicalmente os segredos que há muito, muitíssimo tempo não ouvia assim.

Veio o Poeta. E, com a mão direita pousada no ombro da mulher, perguntou:

- Como te chamas?
A mulher-doçura do vento respondeu:
- O meu nome anda perdido no livro das tuas palavras.
J. Alberto de Oliveira

25.11.21

DEMORADAMENTE


 

Demoradamente o olhar se alicerça nas estrelas

e no seu firmamento.

 

Tudo lá no alto me parece firme ou eterno.

 

É um espaço onde o tempo talvez não exista.

O espaço onde parece que nada apodrece.

J. Alberto de Oliveira


18.11.21

BRINCAR COM A ALMA


 

Quando eu não posso brincar

com a alma

 

as horas ficam entrevadas.

 

De bruços

caio no lamaçal do luto.

 

Faltam-me as palavras

e a substância da música.

 

Quando eu não posso brincar

com a alma

 

falta-me a luz da gramática.

J. Alberto de Oliveira


11.11.21

O SOL NAS ALTURAS




 

O sol nas alturas

e o mel nos rochedos.

 

A história da água

no linho da mesa.

 

O azul da fala nua

nos frutos da palavra.

 

Íntimo rejubila o ar

nos átrios do lume.

J. Alberto de Oliveira


5.11.21

O MAR


 

O mar que lês no poema

tem a mesma sonoridade

 

que o mar dos navegantes.

 

Um e outro ondulam.

Precisam da eternidade.

J. Alberto de Oliveira


28.10.21

EM DUAS QUADRAS


Adeus, fonte de lembranças,

Onde a água remanseia.

Onde fiz tantas promessas

Que só me deram enleios.

 

O afecto que me tens

Assenta bem nos teus olhos.

A tua boca é sagrada:

Parece um botão de rosa.

J. Alberto de Oliveira

 

20.10.21

O APRUMO DO OUTONO


 

Mil e uma folhas do tempo

inflamam o pulso

 

e os idiomas do silêncio.

 

Mil e uma folhas de oiro

e de cristalino vagar

 

apuram o aprumo do outono.

 

Com jubilosa luminescência

e a paz do vento à mistura

 

mil e uma folhas

entram pelas varandas

 

de Vermodium adentro.

J. Alberto de Oliveira


16.10.21

DO OUTONO



Até ao gume da última hora

 

os dias afiam a cor

e a matéria do outono.

 

A vida é tudo ou nada

quando toda ela se encosta

 

ao fio quente da navalha.

 

É sopro de fuga e dor

antes de ser tábua rasa.

J. Alberto de Oliveira

 

9.10.21

ANTÓNIO NOBRE


 


António Nobre está só

e dado ao desassossego.

 

Tem os olhos

encostados ao poente.

 

Há demasias de melancolia

a sangrar nele.

 

O poeta vai morrer só.

J. Alberto de Oliveira