18.2.21

FORMOSOS SÃO OS OLHOS






 

Formosos são os olhos

que principiam

 

no amor sonoro

das marés vivas.

 

Primorosos são os olhos

que luzem na flor de sal.

 

Que me enleiam a voz

com verdes algas do mar.

J. Alberto de Oliveira


11.2.21

DUAS CORRENTES


Todos somos atravessados por duas correntes essenciais.

A corrente humana que nos engrandece, nos prolonga e nos eleva à excelsitude.

E a corrente animal que nos faz sofrer e mata como a todos os seres vivos do universo.

J. Alberto de Oliveira

 

4.2.21

OS TELHADOS DA VIDA


 

É perigoso amar

onde são de vidro

 

fuligem

 

cinza e sal

os telhados da vida.

 

É negro e perigoso

morar

 

onde se morre de pavor.

J. Alberto de Oliveira


28.1.21

CADÊNCIA DE AFECTOS


 

São magníficas as regras 

que inspiram a intenção 


imprevisível da música. 


Que se apuram 

numa cadência de afectos.

J. Alberto de Oliveira


23.1.21

UM ARGUMENTO


 

A fonte é o ponto

mais sensível da terra

 

onde posso beber

à hora de ir embora.

 

Entre mim e a fonte

 

a sede

é motivo de horas cegas.

 

Um argumento da boca

às vezes tão ávida

 

a pedir água.

J. Alberto de Oliveira


15.1.21

O ESBOÇO



 

Nas linhas que me desenham

o esboço é da casa da criação.

 

Da casa onde havia

um cendal de linho

 

mais antigo que o amor.

 

A minha alma crescia no miolo

do pão que sabia a leite quente.

 

Na mesa do pão tudo luzia. 

 

Todas as letras do anoitecer

entravam pela cancela amiga

 

que também para ti se abria.

J. Alberto de Oliveira


6.1.21

LENDO CESÁRIO VERDE



Devagar o bulício das ruas

entra no poente.

 

Devagar se aprende

a soletrar

 

as horas mortas

e a maresia defuntal.

 

Devagar tudo se mistura

com o sentimento

 

dum tísico poeta ocidental.

J. Alberto de Oliveira


 

31.12.20

OS LAMEIROS


 

Os lameiros são espelhos de água e de inverno.

As árvores sem folhas e as nuvens sem rasgões para o azul do céu, aludem ao abandono.

Há pássaros que não emigram. Persistem iguais aos seus antepassados de há trezentos anos.

Limitam-se a viver. Pouco ou nada cantam. Piam e voam de ramo em ramo.

 

O cenário, que vejo com estes olhos que a terra me há-de comer, é todo interior.

 

Os lameiros, a água, as árvores, as nuvens espessas, a erva e os pássaros transformam-se em espírito absorto e pensativo.

 

Este é o seu destino, expansivo até ao fim dos tempos. Esta é a sintaxe do sentimento obscurecido pelo rigor de geadas e frios ventos.

J. Alberto de Oliveira

22.12.20

A DIVINAL CLARIDADE - Gil Vicente


 

A divinal claridade

Seja em vosso entendimento,

E vos dê conhecimento

De sua natividade.


Gil Vicente - Auto da Fé - 1510


18.12.20

TALVEZ UM DIA


 

Talvez um dia se possa ler

no imo sensível da poesia

 

a sorte de horas somadas

ao acaso de palavras extremas.

 

Talvez se possa dizer

 

que a poesia é mais funda e viva

que uma ferida tocada pelo sal.

J. Alberto de Oliveira


11.12.20

VITA BREVIS


 


Se puderdes trabalhar por mim, dai-me de comer e deixai-me pensar aquilo que nem imaginais.

Deixai-me soletrar o que nem ousais dizer.

Possa eu adivinhar o que nunca haveis de ouvir.

Tenha eu o tempo propício para ver o limiar do invisível e sonhar o nada que é evidente.

E quando eu tiver fome, trazei um naco de pão, ó companheiros do mundo.

 J. Alberto de Oliveira

(Texto escrito enquanto ouvia Khatia Buniatishvili ao piano na Casa da Música, no dia 06/10/2019)


4.12.20

CORES E COTOVIAS



Eu sou o nó cego do meu próprio nome

disse o poeta.

E naquele dia não escreveu mais nenhum verso

ou argumento da melancolia.

 

Saiu de casa ao lusco-fusco.

 

Desceu ao jardim

e sentou-se na sua pedra 

para ouvir a arte musical de cores e cotovias.

J. Alberto de Oliveira

 

26.11.20

POR UM CÊNTIMO DE SOL


Por um cêntimo de sol vou indo

impróprio de registo ou notícia.

 

Desço à rua de mala pronta.

Não perco o passo nem a fronte.

 

Desço à rua e faço a travessia

saudando a aragem e as sombras.

J. Alberto de Oliveira


21.11.20

SE EU ADORMECER



Se eu adormecer no ponto

mais sensível do sono


nunca digas adeus.

 

Deixa-me primeiro

inventar uma história.

 

Quero um feixe de frases a

por um cordel de sete nós.


Quero um feixe de frases


que tenham sido atadas

por sete fios de sol.

 

Também quero um aceno

ao alcance de tudo ou nada.

 

Um vadio aceno da mão

cheia de versos travessos.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Pablo Picasso

 

14.11.20

NA ÚLTIMA DOBRA


 


Na última dobra do linho

a hora que nos espera

 

apaga as coisas visíveis

e tira-nos o tubo do oxigénio.

 

Na última dobra do linho

morre-se deste modo:

 

simplesmente com falta

de oxigénio e de poesia.

J. Alberto de Oliveira



3.11.20

LUGARES INCERTOS


 


Se me perguntares a que horas eu volto para casa

eu direi que todas as horas são improváveis.

 

São lugares incertos os meus pontos de partida.

E demais a mais faço o caminho em bicos de pés.

 

Com os olhos afeitos ao escuro e ao silêncio macio.


J. Alberto de Oliveira


28.10.20

NOITE DE NASCER


 

Lunar e profunda era a noite

em que nasci dado ao mundo.

 

Suspensa a noite unia


o ar da luz

e o leite de beijos


aos murmúrios em desalinho.

 

De luxo 

era a noite dada


em lídimo nó

ao meu cordão umbilical.

J. Alberto de Oliveira

Fotografia: eclipse lunar (27/07/2018)  - Horácio Azevedo             


20.10.20

PARA SUBIR DEVAGAR



Para compreender o mundo, precisas de companhia equivalente

a sete medidas de farinha-triga com uma pequeníssima porção de fermento.

E, sobretudo, é necessário que evites o uso e abuso do quotidiano.

 

Lembra-te que os jogos de palavras azedam o convívio e a expectativa do sono.

Olha que há muitas escalas da beleza e da linguagem.

 

Para subir devagar, não esqueças que as escadas mais preciosas

são de madeira e suportam mal cargas pesadas.


J. Alberto de Oliveira

 

13.10.20

UMA CAMÉLIA


 

Não te afastes da frente

por mais que soprem os ventos.

 

A voz sem autor

é uma espécie de tela escura.

 

Não te corrompas

nem te iludas.

 

Uma camélia com tinta rubra  

fia mais fino que o mundo.


J. Alberto de Oliveira


3.10.20

S. FRANCISCO DE ASSIS


S. Francisco de Assis desafiou a morte com serenidade e louvor. Contrariamente à maioria dos humanos, que a olham “tão odiosa e terrível”, o Santo convidou-a a hospedar-se em sua casa: “Bem-vinda seja – dizia – a minha irmã morte”.

E, para o médico: “Coragem, irmão médico, não receies dizer-me que está próxima a minha morte, porque ela é para mim a porta da vida”.

E para os irmãos: “Quando me virdes entrar em agonia, outra vez nu me haveis de estender no chão, como anteontem, e assim morto, deixai-me jazer o tempo que levaria um homem a percorrer folgadamente uma milha”. (2 Celano, 217)

Possivelmente o tempo que vai da terra à eternidade é o mesmo que demora um homem a fazer a pé 1.609,344 metros, isto é, uma milha.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Alberto Péssimo