19.11.15

O CAOS DO MUNDO




O caos do mundo suscita a ideia de turba
confusa

e de sua raiz quadrada em cru.

J. Alberto de Oliveira

12.11.15

JOHANN SEBASTIAN BACH




Sequências e silêncios
firmes em consonância e luta.

Sons musicais
como se fossem botões de estrelas em fuga.

A nudez frontal e sonora
perturba a memória.

É Johann Sebastian Bach que atravessa a rua
para subir a escada infinita.

Quem disse que as consequências da música
são imprevisíveis, e não têm fim?

J. Alberto de Oliveira

3.11.15

ÀS VEZES A PAIXÃO




Às vezes a paixão dos sinos do sul
lembra que morrer

talvez seja uma perda simples da pele.

Talvez seja o ávido regresso
à lembrança contínua do todo.

O bem-querer de quem me viu nascer
devolva à nudez inteira o meu corpo.

J. Alberto de Oliveira

27.10.15

NA TELA DO TEXTO




Escrevo para gastar o lápis até ao fim.
Na tela do texto
a tarefa de cada frase ou linha

é lavrar a solidão e o pó da noite
à espera dum acume do luar.

J. Alberto de Oliveira

14.10.15

LÁ NA PRAIA DA BOA NOVA




Lá na praia da Boa Nova
estancam as fantasias.

Estancam passos
ressequidos e alquebrados.

São passos aflitivos
de lamento e dores.

Lá na praia da Boa Nova
a fadiga é do sol a pôr-se

nos olhos de António Nobre.

J. Alberto de Oliveira

2.10.15

PARA ONDE IR?




Para onde ir?
Preciso de um espaço profundo, isento das idades
e reciclagem,
livre das medidas de peso e superfície,
sem sombras de mim próprio, inacessível à poeira e ao lixo.

J. Alberto de Oliveira

26.9.15

O DIVERTIMENTO DAS MUSAS




O divertimento das musas é mexer
e remexer nas dores do poeta.

Elas consubstanciam o inefável:
a matéria viva de sons e versos.

J. Alberto de Oliveira

17.9.15

RESPOSTA A JOAN MIRÓ




Há tempos comecei uma nova tarefa:
coligir as frases ditas pelas mães agarradas à sonoridade 
exaltante dos filhos.

São frases que não publico nos jornais, não escrevo nos cadernos,
não sarrabisco nos muros do mundo, não soletro no escuro.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Pintura de Joan Miró em Portugal

12.9.15

UM QUASE NADA



Era apenas uma névoa de nuvem
furtivamente soprada

por sete ou mais crianças.

Era um quase nada
no azul mais profundo da alma.

J. Alberto de Oliveira

13.8.15

TISANAS - ANA HATHERLY (1929-2015)



Tisana 28

Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come.

Ana Hatherly - 351 Tisanas





Tisana 88

Era uma vez uma habitação em que todas as paredes eram portas. Os visitantes vinham de longe para percorrê-la porque, dizia-se, quem entrasse nela podia ver finalmente o prodígio rápido, não o prodígio lento de todos os dias de que só nos apercebemos no momento da morte. Os visitantes eram levados cegamente de porta em porta através da maior escuridão. Terminada a visita alguns concluíam só o desnecessário dura excessivamente. Mas um dia um visitante exclamou como tudo é parecido. 

Ana Hatherly – 351 Tisanas

11.8.15

LIBERDADE MEDITATIVA




Pratico sentimentos apuradamente urdidos como se fossem rendas para uma blusa. 
Por assim dizer, insisto no exercício das filigranas que sustentam o luxo, o primor do poema e o azul.



A minha escrita não é argumentativa, mas intuitiva. 
Não tenho nada a demonstrar: só adivinho.
Por ora, escrevo-me com alma e liberdade meditativa.



Há gente que me pede páginas inteiras de palavras, de frases, de fardos textuais. Gostam de parágrafos e mais parágrafos. Assim como os burros que prezam a manjedoura cheia de palha. Não sou capaz disso.
O que tenho para dizer é sempre tão pouco, tão curto, tão raro, tão livre!
Não sei copiar para os cadernos o que oiço e vejo ao meu redor. Não sou narrativo. As vezes, entretenho-me a tecer a vida com exercícios académicos. Mas nunca sai lisa a tela.
Não sei preencher, com opulentas palavras e fios de ideias, as minhas parcelas de papel.
Não sei escrever a jeito, não sei dizer coisas.

J. Alberto de Oliveira 

1.8.15

ACERCA DE ENTREPOEMAS - POR M. BOCHICHIO





ACERCA DE ENTREPOEMAS
APRESENTAÇÃO
DE
MARIA BOCHICHIO


Comecemos pelo titulo: ENTREPOEMAS

Como é fácil notar, as palavras formadas por “entre”, como parte inicial, são numerosas.

Trata-se de um neologismo criado a partir de um sólido paradigma que o poeta utiliza como primeiro elemento das composições.

Para conhecer as estruturas desta colectânea poética,  o melhor  é comentar 1 ou 2 poemas que considero exemplares no estilo do autor.

Começo com o poema (p. 52)

LEGENDAS DO AR                     LER O INACESSÍVEL

As águas que passam                    A criança que me destina
iluminantes e vivas                        a ler o inacessível

são águas preciosas
sonhantes e claras.                        tem pensamentos no mar.

Em ritmo antigo                            Em contraponto me ensina
Puras esplendem                           um dialecto inspirado

à flor do vento.                              nos jogos com o vento.

São legendas do ar
as águas que passam                    Da nudez  a luzir no ar
                                                       ela  diz-me tudo
vivas no pensamento.                    
                                                       ou quase tudo em segredo.

Aparentemente são poemas simples, constituídos por versos breves, exasílabos na sua maioria. São, sem excluir a influência de versos mais breves, pentassílabos ou mais longos heptassílabos. Mas na verdade cada agrupamento e cada espaço entre os versos têm a sua explicação estrutural.
Por exemplo, o primeiro verso: “As águas que passam” é repetido no penúltimo verso, de modo a sugerir uma composição circular.

Os dois versos: “à flor do vento” e o último verso “viva no pensamento” estão isolados, isto é, aparecem situados cada um entre espaços. Assim, podemos perguntar: porque estão ligados pela única rima do poema?

Do resto: vivas – preciosas – claras perfazem uma consonância que concerne o morfema do plural. Trata-se de uma retórica a que poderíamos chamar de grau zero, feita com elementos básicos da língua. Como pode também ser um morfema.

Este cuidado da composição pode ir além dos simples poemas. Certos traços pertinentes ao poema “legenda do ar” voltam a aparecer no poema seguinte. Vejam por exemplo o poema da página seguinte: “Ler o inacessível” (p. 23). Regressa o tema do Vento no verso 6, e do Ar no verso 7, no momento da rima. Ou, melhor dizendo, no primeiro poema vento rima com pensamento, enquanto no segundo poema está isolado.
Em contrapartida, “ar” está isolado no primeiro poema, enquanto, no segundo, rima com “mar. E mesmo nos títulos
“Legenda” e “Ler” constituem uma ligação entre poemas.
Pode-se opinar que o próprio título da recolha faça alusão a esta técnica.

Passemos a um outro exemplo. O poema:


NA CLAREIRA DO JARDIM


A      Na clareira do jardim
         há uma pedra lustral.

B      A pedra que sustenta
         o dia em que nasci.

A1    Na clareira do jardim
         há uma pedra atenta.

B1     A pedra dos ventos
         que falam por mim.


Mais uma vez a simplicidade é só aparente e na verdade esconde uma estrutura bastante complexa.
Vamos analisar. A primeira constatação que se impõe é a repetição do 1º verso para o 5º verso: “Na clareira do jardim” sugere uma bipartição do poema. Assim, proponho indicar esta bipartição por meio de Letras A e B e A1 /B1.
Estas letras evidentemente aludem a um conjunto de correspondências. Ou seja, o 2º verso de A “há uma pedra lustral” corresponde ao 2º verso de A1 “há uma pedra atenta”.
As mesmas ligações existem parcialmente entre B e B1 ou seja, “A pedra que sustenta” corresponde a “a pedra dos ventos”.

Dentro desta estrutura também há as rimas que têm uma precisa função: jardim – jardim – mim (do ultimo verso) e no plano das assonâncias “nasci” do 4º verso tem uma “i” nasal.

A rima atravessa o poema todo: enquanto “sustenta - atenta” ligam os elementos centrais.
No plano do conteúdo pode-se dizer que cada um dos 4 dísticos enuncia uma qualidade atribuível à pedra. É uma espécie de personificação. Como se esta pedra tivesse características humanas.
É a pedra que liga o poeta às suas origens. É uma pedra pura que assiste ao nascimento do poeta; é uma pedra atenta em que os ventos estão a falar do poeta, da sua história e da sua individualidade. Esta pedra, como símbolo das características do próprio autor, o homem José Alberto de Oliveira, que vê as origens do nascimento em si do poeta e ele se autodefine como pedra.

Entretanto, não esgotamos ainda os aspectos formais que neste caso nos parecem muito importantes. Voltemos à relação que existe entre os 2 versos “há uma pedra lustral” (v1) e “há uma pedra atenta” (v.6). Aqui temos uma base invariável: “há uma pedra” e um elemento sujeito à variação (lustral e atenta). Trata-se de uma técnica muito antiga que remete para o paralelismo típico das cantigas de amigo, da época medieval. Neste quadro se explica também a tendência para a repetição: pedra – jardim.

É como diz Óscar Lopes: “A vocação natural da poesia portuguesa para a repetição enquanto contraposta à narração”.

A esta retórica de grau zero corresponde uma visão franciscana da realidade na qual se destacam os elementos simples e essenciais: a pedra, a água, a luz, o ar, etc., etc.
Parece-me que esta maneira de fazer poesia se situa na estria de Eugénio de Andrade que aliás foi aquele que encorajou o autor quando ainda jovem, a escrever poesia. O grande poeta Eugénio de Andrade falecido em 2005.

Mas existe uma profunda diferença entre os dois e entre a disposição das palavras no espaço da página branca. O branco da página indica uma pausa como numa partitura musical. O que para Eugénio de Andrade permite dizer através do silêncio a indizibilidade da palavra. Para José Alberto, o espaço deixado em branco na página, permite afirmar ainda hoje o valor e a dizibilidade da palavra essencial, no caos da incomunicabilidade.
É quase um regresso às origens da nossa cultura ocidental, à harmonia inicial da tradição judaica-helénica-cristã. É um recuo à tradição bíblica do Génesis, da criação do mundo.
Deus cria o mundo, a realidade, o homem, através do poder da palavra. E o homem consegue dizer o mundo.

Em suma: o desejo de José Alberto de Oliveira, com a sua poesia, é afirmar a capacidade da dizibilidade da palavra.

Maria Bochichio
23/10/2014

25.7.15

HIPÓTESES & RESTOLHO



Enquanto a filosofia estuda sentada,
a poesia viaja.

          Enquanto a filosofia analisa a luz,
          a poesia intui a luminosidade.

Enquanto a filosofia mastiga a razão,
a alma da poesia respira.

          Os filósofos torturam a palavra.
          Os poetas entoam o verbo.

Os filósofos bebem a razão.
Os poetas beijam o que bebem.

          Os filósofos avisam.
          Os poetas cantam.

A filosofia explica o porquê de não sei o quê na rosa.
A poesia contempla a rosa isenta de porquês.

          Na filosofia ouve-se um martelo de ideias.
          Na poesia a sonoridade é musical.

A filosofia é um curso de quês e porquês.
A poesia é um curso de silêncio.

          A filosofia ordena o sentido dos ventos.
          A poesia sopra onde quer como fazem os ventos.

Por fim, apetece perguntar: qual a hipótese mais plausível – o primado da razão ou o primado de um verso ardente?
O filósofo alemão Martin Heidegger tem a resposta:
“O filósofo pensa o mais profundo.
O poeta diz o mais alto.”

J. Alberto de Oliveira

7.7.15

ARTHUR RIMBAUD




Arthur Rimbaud o poeta.
O clarão do rapaz raro.

No eixo negligentemente
sensível do olhar

as vogais inomináveis
alumiam a inteligência.

No auge da vida breve
a alma cega de prazeres
                                       
seus líquidos versos.

J. Alberto de Oliveira

     
                               

4.7.15

EFEITOS DA LUA




O luzidio relento e o leite
abriam-lhe a blusa.

Molhavam-lhe o peito
os ávidos efeitos da lua.

J. Alberto de Oliveira

27.6.15

ADAGIO




Não toco em nada
quando a chuva molha as rosas.

Não escrevo nada
enquanto as varas do vento

desenham o imo de uma frase.

Na voz dos sinos do sul
trocando as horas em sentimento

releio só lembranças quebradas.

J. Alberto de Oliveira

13.6.15

NOS FINS DO HORIZONTE



Partículas do ar poente
e de água

sustentam anjos
e as aves

que pairam
nos fins do horizonte.

Que esvoaçam
entre poemas e lenços.

Que atordoam o oiro 
vesperal do sono.

J. Alberto de Oliveira

4.6.15

IN TEMPUS PRӔSENS



Há os que fogem dos sentimentos do mesmo modo
que outros passam velozes pelas brasas do amor.


Primeiro roubam o ouro e o linho ao luar.
Depois escurecem o jardim e as tuas rosas oh Mãe!


O amor só quer o amor e nada pede em troca
a não ser um ou sete beijos por uma rosa.

J. Alberto de Oliveira

27.5.15

A REGRA





Por uma exígua soma de ouro e poder
gritou em voz alta e aguda:
Sai daqui. Esta terra não é tua.

E fiz do exílio a regra:

Não se deve pedir licença ou um beijo
à pequenez da incivilidade

e muito menos à mediocridade cega.

J. Alberto de Oliveira

11.5.15

CORRENTE DE FOGO




Obrigado, C.
Que bem me fez o texto!
Ajudou-me a pensar, a entender as inúmeras irritações que entristecem
quando estou diante de uma obra de arte excelente: paisagem, música, texto, pintura, rosto, arquitectura.
Eu estremeço de ira quando me perco no clarão da obra
e há gente por perto,
à minha volta, com posturas de impostura e maneiras
de imparáveis passageiros.
Essa gente tira-me de mim.
Eles não sabem o que é o silêncio, a quietude, a interioridade.
Eles não sabem como se estabelece, entre a delicadeza da alma
e o interior do fulgor,
uma furtiva corrente de fogo.

J. Alberto de Oliveira

Imagem: Duane Michals  Ludmilla Tchérina,