ACERCA DE ENTREPOEMAS
APRESENTAÇÃO
DE
DE
MARIA BOCHICHIO
Comecemos
pelo titulo: ENTREPOEMAS
Como
é fácil notar, as palavras formadas por “entre”,
como parte inicial, são numerosas.
Trata-se
de um neologismo criado a partir de um sólido paradigma que o poeta utiliza
como primeiro elemento das composições.
Para
conhecer as estruturas desta colectânea poética, o melhor é comentar 1 ou 2 poemas que considero
exemplares no estilo do autor.
Começo
com o poema (p. 52)
LEGENDAS DO AR LER O
INACESSÍVEL
As águas que
passam A criança que me destina
iluminantes e
vivas a ler o
inacessível
são águas
preciosas
sonhantes e
claras. tem
pensamentos no mar.
Em ritmo antigo Em contraponto me
ensina
Puras esplendem um dialecto inspirado
à flor do vento. nos
jogos com o vento.
São legendas do
ar
as águas que
passam Da nudez a luzir no ar
ela diz-me tudo
vivas no
pensamento.
ou quase tudo em segredo.
Aparentemente
são poemas simples, constituídos por versos breves, exasílabos na sua maioria. São, sem excluir a influência de versos
mais breves, pentassílabos ou mais longos heptassílabos. Mas na verdade cada
agrupamento e cada espaço entre os versos têm a sua explicação estrutural.
Por
exemplo, o primeiro verso: “As águas que passam” é repetido no penúltimo verso,
de modo a sugerir uma composição circular.
Os
dois versos: “à flor do vento” e o último
verso “viva no pensamento” estão
isolados, isto é, aparecem situados cada um entre espaços. Assim, podemos perguntar: porque estão ligados pela única rima do
poema?
Do
resto: vivas – preciosas – claras perfazem
uma consonância que concerne o morfema do plural. Trata-se de uma retórica a
que poderíamos chamar de grau zero, feita com elementos básicos da língua. Como
pode também ser um morfema.
Este
cuidado da composição pode ir além dos simples poemas. Certos traços pertinentes
ao poema “legenda do ar” voltam a
aparecer no poema seguinte. Vejam por exemplo o poema da página seguinte: “Ler o inacessível” (p. 23). Regressa o
tema do Vento no verso 6, e do Ar no verso 7, no momento da rima. Ou, melhor
dizendo, no primeiro poema vento
rima com pensamento, enquanto no
segundo poema está isolado.
Em
contrapartida, “ar” está isolado no
primeiro poema, enquanto, no segundo, rima com “mar. E mesmo nos títulos
“Legenda” e
“Ler” constituem
uma ligação entre poemas.
Pode-se
opinar que o próprio título da recolha faça alusão a esta técnica.
Passemos
a um outro exemplo. O poema:
NA CLAREIRA DO
JARDIM
A Na
clareira do jardim
há uma pedra lustral.
B A
pedra que sustenta
o dia em que nasci.
A1 Na
clareira do jardim
há uma pedra atenta.
B1 A pedra dos ventos
que falam por mim.
Mais
uma vez a simplicidade é só aparente e na verdade esconde uma estrutura
bastante complexa.
Vamos
analisar. A primeira constatação que se impõe é a repetição do 1º verso para o
5º verso: “Na clareira do jardim” sugere
uma bipartição do poema. Assim, proponho indicar esta bipartição por meio de
Letras A e B e A1 /B1.
Estas
letras evidentemente aludem a um conjunto de correspondências. Ou seja, o 2º
verso de A “há uma pedra lustral” corresponde
ao 2º verso de A1 “há uma
pedra atenta”.
As
mesmas ligações existem parcialmente entre B e B1 ou seja, “A pedra que sustenta” corresponde a “a pedra dos ventos”.
Dentro
desta estrutura também há as rimas que têm uma precisa função: jardim – jardim – mim (do ultimo verso)
e no plano das assonâncias “nasci” do
4º verso tem uma “i” nasal.
A
rima atravessa o poema todo: enquanto “sustenta
- atenta” ligam os elementos centrais.
No
plano do conteúdo pode-se dizer que cada um dos 4 dísticos enuncia uma
qualidade atribuível à pedra. É uma espécie de personificação. Como se esta
pedra tivesse características humanas.
É
a pedra que liga o poeta às suas origens. É uma pedra pura que assiste ao
nascimento do poeta; é uma pedra atenta em que os ventos estão a falar do poeta,
da sua história e da sua individualidade. Esta pedra, como símbolo das características
do próprio autor, o homem José Alberto de Oliveira, que vê as origens do
nascimento em si do poeta e ele se autodefine como pedra.
Entretanto,
não esgotamos ainda os aspectos formais que neste caso nos parecem muito
importantes. Voltemos à relação que existe entre os 2 versos “há uma pedra lustral” (v1) e “há uma pedra atenta” (v.6). Aqui
temos uma base invariável: “há uma
pedra” e um elemento sujeito à variação (lustral e atenta). Trata-se de uma técnica muito antiga que remete
para o paralelismo típico das cantigas de amigo, da época
medieval. Neste quadro se explica
também a tendência para a repetição: pedra
– jardim.
É
como diz Óscar Lopes: “A vocação natural da poesia portuguesa para a repetição
enquanto contraposta à narração”.
A
esta retórica de grau zero corresponde uma visão franciscana da realidade na
qual se destacam os elementos simples e essenciais: a pedra, a água, a luz, o
ar, etc., etc.
Parece-me
que esta maneira de fazer poesia se situa na estria de Eugénio de Andrade que
aliás foi aquele que encorajou o autor quando ainda jovem, a escrever poesia. O
grande poeta Eugénio de Andrade falecido em 2005.
Mas
existe uma profunda diferença entre os dois e entre a disposição das palavras
no espaço da página branca. O branco da página indica uma pausa como numa
partitura musical. O que para Eugénio de Andrade permite dizer através do
silêncio a indizibilidade da palavra. Para José Alberto, o espaço deixado em
branco na página, permite afirmar ainda hoje o valor e a dizibilidade da
palavra essencial, no caos da incomunicabilidade.
É
quase um regresso às origens da nossa cultura ocidental, à harmonia inicial da
tradição judaica-helénica-cristã. É um recuo à tradição bíblica do Génesis, da
criação do mundo.
Deus
cria o mundo, a realidade, o homem, através do poder da palavra. E o homem
consegue dizer o mundo.
Em
suma: o desejo de José Alberto de Oliveira, com a sua poesia, é afirmar a
capacidade da dizibilidade da palavra.
Maria Bochichio
Maria Bochichio
23/10/2014