1.8.15

ACERCA DE ENTREPOEMAS - POR M. BOCHICHIO





ACERCA DE ENTREPOEMAS
APRESENTAÇÃO
DE
MARIA BOCHICHIO


Comecemos pelo titulo: ENTREPOEMAS

Como é fácil notar, as palavras formadas por “entre”, como parte inicial, são numerosas.

Trata-se de um neologismo criado a partir de um sólido paradigma que o poeta utiliza como primeiro elemento das composições.

Para conhecer as estruturas desta colectânea poética,  o melhor  é comentar 1 ou 2 poemas que considero exemplares no estilo do autor.

Começo com o poema (p. 52)

LEGENDAS DO AR                     LER O INACESSÍVEL

As águas que passam                    A criança que me destina
iluminantes e vivas                        a ler o inacessível

são águas preciosas
sonhantes e claras.                        tem pensamentos no mar.

Em ritmo antigo                            Em contraponto me ensina
Puras esplendem                           um dialecto inspirado

à flor do vento.                              nos jogos com o vento.

São legendas do ar
as águas que passam                    Da nudez  a luzir no ar
                                                       ela  diz-me tudo
vivas no pensamento.                    
                                                       ou quase tudo em segredo.

Aparentemente são poemas simples, constituídos por versos breves, exasílabos na sua maioria. São, sem excluir a influência de versos mais breves, pentassílabos ou mais longos heptassílabos. Mas na verdade cada agrupamento e cada espaço entre os versos têm a sua explicação estrutural.
Por exemplo, o primeiro verso: “As águas que passam” é repetido no penúltimo verso, de modo a sugerir uma composição circular.

Os dois versos: “à flor do vento” e o último verso “viva no pensamento” estão isolados, isto é, aparecem situados cada um entre espaços. Assim, podemos perguntar: porque estão ligados pela única rima do poema?

Do resto: vivas – preciosas – claras perfazem uma consonância que concerne o morfema do plural. Trata-se de uma retórica a que poderíamos chamar de grau zero, feita com elementos básicos da língua. Como pode também ser um morfema.

Este cuidado da composição pode ir além dos simples poemas. Certos traços pertinentes ao poema “legenda do ar” voltam a aparecer no poema seguinte. Vejam por exemplo o poema da página seguinte: “Ler o inacessível” (p. 23). Regressa o tema do Vento no verso 6, e do Ar no verso 7, no momento da rima. Ou, melhor dizendo, no primeiro poema vento rima com pensamento, enquanto no segundo poema está isolado.
Em contrapartida, “ar” está isolado no primeiro poema, enquanto, no segundo, rima com “mar. E mesmo nos títulos
“Legenda” e “Ler” constituem uma ligação entre poemas.
Pode-se opinar que o próprio título da recolha faça alusão a esta técnica.

Passemos a um outro exemplo. O poema:


NA CLAREIRA DO JARDIM


A      Na clareira do jardim
         há uma pedra lustral.

B      A pedra que sustenta
         o dia em que nasci.

A1    Na clareira do jardim
         há uma pedra atenta.

B1     A pedra dos ventos
         que falam por mim.


Mais uma vez a simplicidade é só aparente e na verdade esconde uma estrutura bastante complexa.
Vamos analisar. A primeira constatação que se impõe é a repetição do 1º verso para o 5º verso: “Na clareira do jardim” sugere uma bipartição do poema. Assim, proponho indicar esta bipartição por meio de Letras A e B e A1 /B1.
Estas letras evidentemente aludem a um conjunto de correspondências. Ou seja, o 2º verso de A “há uma pedra lustral” corresponde ao 2º verso de A1 “há uma pedra atenta”.
As mesmas ligações existem parcialmente entre B e B1 ou seja, “A pedra que sustenta” corresponde a “a pedra dos ventos”.

Dentro desta estrutura também há as rimas que têm uma precisa função: jardim – jardim – mim (do ultimo verso) e no plano das assonâncias “nasci” do 4º verso tem uma “i” nasal.

A rima atravessa o poema todo: enquanto “sustenta - atenta” ligam os elementos centrais.
No plano do conteúdo pode-se dizer que cada um dos 4 dísticos enuncia uma qualidade atribuível à pedra. É uma espécie de personificação. Como se esta pedra tivesse características humanas.
É a pedra que liga o poeta às suas origens. É uma pedra pura que assiste ao nascimento do poeta; é uma pedra atenta em que os ventos estão a falar do poeta, da sua história e da sua individualidade. Esta pedra, como símbolo das características do próprio autor, o homem José Alberto de Oliveira, que vê as origens do nascimento em si do poeta e ele se autodefine como pedra.

Entretanto, não esgotamos ainda os aspectos formais que neste caso nos parecem muito importantes. Voltemos à relação que existe entre os 2 versos “há uma pedra lustral” (v1) e “há uma pedra atenta” (v.6). Aqui temos uma base invariável: “há uma pedra” e um elemento sujeito à variação (lustral e atenta). Trata-se de uma técnica muito antiga que remete para o paralelismo típico das cantigas de amigo, da época medieval. Neste quadro se explica também a tendência para a repetição: pedra – jardim.

É como diz Óscar Lopes: “A vocação natural da poesia portuguesa para a repetição enquanto contraposta à narração”.

A esta retórica de grau zero corresponde uma visão franciscana da realidade na qual se destacam os elementos simples e essenciais: a pedra, a água, a luz, o ar, etc., etc.
Parece-me que esta maneira de fazer poesia se situa na estria de Eugénio de Andrade que aliás foi aquele que encorajou o autor quando ainda jovem, a escrever poesia. O grande poeta Eugénio de Andrade falecido em 2005.

Mas existe uma profunda diferença entre os dois e entre a disposição das palavras no espaço da página branca. O branco da página indica uma pausa como numa partitura musical. O que para Eugénio de Andrade permite dizer através do silêncio a indizibilidade da palavra. Para José Alberto, o espaço deixado em branco na página, permite afirmar ainda hoje o valor e a dizibilidade da palavra essencial, no caos da incomunicabilidade.
É quase um regresso às origens da nossa cultura ocidental, à harmonia inicial da tradição judaica-helénica-cristã. É um recuo à tradição bíblica do Génesis, da criação do mundo.
Deus cria o mundo, a realidade, o homem, através do poder da palavra. E o homem consegue dizer o mundo.

Em suma: o desejo de José Alberto de Oliveira, com a sua poesia, é afirmar a capacidade da dizibilidade da palavra.

Maria Bochichio
23/10/2014