22.12.08

BILHETE DE NATAL





Marta,
Corre para ti, correndo para o palco ou para o texto onde podes reacender o júbilo, as sementes e os espelhos do mundo.
Corre e leva contigo a alma e o pequeno lápis da tua infância.

Texto e fotografia:
J. Alberto de Oliveira

15.12.08

O VAGABUNDO




A personagem de Charlot, que tantos críticos e biógrafos endeusaram ao serviço das conveniências de cada um, aparece-nos reduzida às justas proporções, com feições de anjo e traços de demónio, meio Quixote, meio Sancho Pança, com coração, cabeça e estômago – o que o torna a figura cem por cento humana.
Esse retrato “tirado pelo natural” desconcerta e decepciona os hagiógrafos de São Charlot, pois desfaz todas as teorias que à roda do bonifrate chaplinesco erigiram para edificação da humanidade.
Chaplin descreve com prodigiosa lucidez o carácter da sua genial criação, que lhe surgiu a bem dizer inteira e completa naquela tarde de Edendale, quando pôs “umas calças muito largas, uns sapatos muito grandes, bengala e chapéu de coco”, e adoptou um bigodinho que o fizesse parecer menos jovem sem contudo lhe esconder a expressão. Indumentária que ele quis “contraditória”, de harmonia com a própria personagem: “as calças largas e o casaco apertado, o chapéu muito pequeno e as botas enormes”. E logo descreveu a Mack Sennett o tipo multifacético que imaginara: “um vagabundo e ao mesmo tempo um cavalheiro, um poeta, um sonhador, um solitário, sempre ansioso por idílios e aventuras”, que “gostaria que o tomassem por um sábio, um músico, um duque ou um jogador de pólo”, mas que “não desdenha apanhar uma beata do chão ou furtar o chupa-chupa a um bebé”, nem “perde a ocasião de dar um pontapé no traseiro de uma senha... mas só quando está fulo!”
Naquele cenário de átrio de hotel em que lhe ensaia os primeiros passos, Chaplin tem a impressão de que Charlot, empertigado e afectado, é “um impostor que se fazia passar por cliente, quando na realidade era um vagabundo que apenas procurava abrigo”.


António Lopes Ribeiro
in “Charles Chaplin – Autobiografia”

9.12.08

QUE HORAS SÃO?




Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais importa.
Para que o horrível fardo do tempo não vos pese sobre os ombros e vos faça pender para a terra, deveis embriagar-vos sem cessar.
Mas de quê?
De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha.
Mas embriagai-vos!
E se um dia nos degraus de um palácio, na erva verde de uma valeta, na solidão baça do vosso quarto, acordardes, já sóbrios, perguntai ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai:
– Que horas são?
– São horas de vos embriagardes!
Para que não sejais os escravos martirizados do tempo, embriagai-vos sem cessar. De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha.


Charles Baudelaire(Tradução: Jorge Sousa Braga)

8.12.08

A NEVE






_____ fala-me da neve
e de sua candura profunda.

Fala-me das legendas

que a neve
acende no pensamento.


J. Alberto de Oliveira

CITAÇÕES DO OLHAR





1 –

Antes da palavra

a demora das horas
na fala do olhar.


2 –

A cegueira de ser
água e fogo

argila quente
sopro amoroso.


3 –

A verdade por dentro
das coisas simples.

O ouro da intimidade.

O selo da mais alta palavra.


 J. Alberto de Oliveira

S. FRANCISCO DE ASSIS



S. Francisco de Assis falava outrora
Às aves e às ervinhas, triste e só…
Se tudo quanto vive, sofre e chora,
É a mesma alma eterna, o mesmo pó!

Por isso ele sentia pena e dó
Por tudo quanto doira a luz da aurora,
E não bebeu no poço de Jacob
Aquela água de vida redentora.

Irmão morte, irmão corpo, irmãs ervinhas!
Ó pedras! Ermas fontes pobrezinhas!
Lobos, uivando à lua, em erma serra!

Quanto vos amo em Deus! E sinto bem
Que esta terra que eu beijo é nossa mãe
E que a sombra de Deus anda na Terra!


Teixeira de Pascoaes
Fotografia: J. Alberto de Oliveira

15.10.08

O SOPRO INTUITIVO





O sangue 
rendido à sede.

A linha infalível.

O sopro
intuitivo de Deus.


J. Alberto de Oliveira

7.10.08

O SILÊNCIO VIBRANTE




(...) Falo de uma viagem onde é possível perder o próprio nome, e morrer disso.
E então viver.
Não dormindo, como as nossas bestas respeitáveis.
Viver - digo eu.
E que o nosso afastamento, o silêncio vibrante, a grande morte pensada e amada nas profundidades - fossem bastante para vergar as bestas todas, empurrá-las pelo seu próprio sono abaixo, afundá-las até ao inferno.

Herberto Helder - Apresentação do Rosto

NA CARREIRA DA ESTRELA



Entrando eu num eléctrico (recordo-me bem, era da carreira da Estrela), deparo com Fernando Pessoa que me pergunta de chofre:
– Já notou uma coisa, ó Pascoaes? Há escritores de quem toda a gente fala e ninguém lê, e outros de quem ninguém fala e toda a gente lê. E destas duas espécies, qual, em seu entender, tem mais valor?
Respondi que aqueles de quem toda a gente fala e ninguém lê, e Fernando Pessoa rematou:
– É também a minha opinião.


(De uma entrevista de Teixeira de Pascoaes)

5.10.08

A PRIMEIRA VIAGEM





Não havia mundo.
Não havia coisas.

Era tudo
um fio de quase nada.

Era um fio de luz
o desenho da árvore

onde só havia
sonhos de uma cotovia.


J. Alberto de Oliveira

3.10.08

ESTRELA VIVA NO CÉU





Estrela viva no céu
de tão alto sonhar

diz-me o que vês.

Ensina-me a escrever
segredos de poeta.

Dita-me um poema.


J. Alberto de Oliveira

Fotografia: Carlos de Oliveira

19.9.08

UMA VARA DE FOGO





Uma vara de fogo
me seca a boca.

O ar é pensativo

e quase absorto
nas letras que respiro.


J. Alberto de Oliveira
Fotografia: Ana Afonso

18.9.08

FIGURAS DE BRUMA




Figuras de bruma
iluminam o horizonte.

Acendem as águas
negras do mundo.

Figuras de névoa
de alma e sonhos

perfumam o ar
e o alto silêncio.

Voam com o vento
quando eu corro

atrás de segredos
que já foram

abrigos do fogo.

J. Alberto de Oliveira
10/08/2008
Fotografia: Ana Afonso

TRÊS VEZES AMOR



                                   para a Inês

A menina veio 
para dizer

três vezes amor.

furtivamente
um fio invisível

em pleno 

voo do vento

lhe tocou no rosto.

J. Alberto de Oliveira

30.7.08

SALMO




Livra-me Senhor
das máquinas do vazio.

Livra-me do martelo 

duro da dor

a bater como bate

um coração rude e frio.

J. Alberto de Oliveira

23.7.08

A CASA




A casa que se fez
de alma e pedra

no interior do lugar
e do desenho 


é obra do alicerce.

Mostra a nudez
rasgada na janela.

Acende o silêncio
na primeira chama


que lhe traz o vento.

J. Alberto de Oliveira

25.6.08

O SEGREDO MAIOR





No lugar onde ouvi
o segredo maior


havia um tanque
de água e limos

e delírios da alma.

Florido estremecia
na água o linho.

Estremecia o silêncio
rente à flor do segredo.


J. Alberto de Oliveira

12.6.08

O MENSAGEIRO





Não conheço paixão mais profunda nAquele de que sou mensageiro do que poder dizer, com verdade, a toda a mulher: Bendita sois entre todas ____________.

Maria Gabriela Llansol
in Lisboaleipzig 2

10.6.08

DUAS PALAVRAS





- Onde vais buscar o linho verbal que há nos teus versos?
- À substância unitiva e configurante dessas mesmas duas palavras.


J. Alberto de Oliveira

4.6.08

A PRONÚNCIA MUSICAL DE J. S. BACH




Ó amantes de geometria e matemática! Quem de vós, porventura, já leu abismos, equações, alturas, ângulos e fracções luminosas num desenho musical de J. S. Bach?

E qual a distância entre o fulgor tangível de uma flor e a pronúncia musical de J. S.Bach?

J. Alberto de Oliveira

6.5.08

O ROSTO QUE SONHA



                                                     para José Rodrigues

Não se sabe donde
vêm a mão
o silêncio e a luz.

Com elementos primordiais

e legendas vivas
do Santo de Assis

descem e mostram o rosto
que sonha demasias.

São demasias de ser 
e ternura.

Debaixo da mão
do silêncio e da luz

resplende e sonha
o primeiro de muitos rostos.

J. Alberto de Oliveira

5.5.08

O LUME VIVO





A mão no silêncio
da noite perfumado.

O lume vivo
na mão extasiado.


J. Alberto de Oliveira

DO CANTO MAIOR




[...] perguntam à Sulamita o que o seu amado tem de particular, sobretudo que tem ele que elas também não tenham nos seus


e ela desce ao pormenor de lhes dizer como ele a faz [...],


fechou-se na minha antecâmara, penetrou nos meus luxuosos apartamentos, brincou com os brincos e os colares, com os mamilos e os dedos, com os tecidos e os lábios,


com as colunas e as minhas longas pernas onde gosta de se enrolar como heras e vinha virgem, embrenhou-se, parou ofegante,


deslizava pela minha pele mais escura que a noite, corria pelas minhas formas mais firmes que o solo dos seus combates e, finalmente, depôs em mim o segredo do seu veneno; quando acordei, estava só e tive medo que tivesse morrido ou, se morto,


eu não conseguisse encontrá-lo como meu, ou eu?


Maria Gabriela Llansol - ONDE VAIS DRAMA-POESIA?

10.4.08

OS SONS DA MELANCOLIA




Um fio de voz sentida
por acção íntima do vento

é obra das mãos.

Os sons da melancolia
ouvem-se rente ao chão.

J. Alberto de Oliveira

4.4.08

A ALMA A PRUMO




Entre os primeiros fios
de sangue e pensamento

ardia a fala da alegria.

Entre o amor no poema
e o fulgor da infância

luzia um verso profundo.

Via-se num filamento
a alma a prumo.

De júbilo era a música.

J. Alberto de Oliveira

Fotografia: Carlos de Oliveira

21.3.08

UM NÚMERO VAGABUNDO




Por sorte em mim o que lês
ao ritmo das coisas nascentes?


Um número vagabundo.


O número ímpar e propício
aos rituais
do vento e da primeira luz.


J. Alberto de Oliveira

17.3.08

MARIA GABRIELA LLANSOL



Maria Gabriela Llansol, que "temia a impostura da língua", tornou-se vulnerável às "sombras do luar libidinal".
Doou-nos o fulgor da textualidade.
Convida-te a seres legente do texto, do "desejo insustentável de eternidade".
M. G. Llansol ensina que "escrever é amplificar pouco a pouco" e que o acto de ler é "uma alma crescendo".

J. Alberto de Oliveira

6.3.08

O VESPERTINO COMEÇO




Com o vespertino começo
de uma luz enlevada

alguém me ensina a ler
a alegria do enamoramento.

No aprumo da claridade
a cadência é mútua.

O ritmo é da intimidade.


J. Alberto de Oliveira






22.2.08

PARA ALÉM DA MARGEM




Os poetas, os santos, os artistas - no seu obstinado desassossego e desejo de perfeição - atingem a consciência, a lucidez sensível e altiva do que são e onde estão:
para além da margem.

J. Alberto de Oliveira

19.2.08

EM SETEMBRO








A mulher que em setembro
corre ao vento pelo mundo

alude o amor e o sangue
de seu maternal aprumo.

Resplendece ao vento
a mulher que em setembro

leva rosas da infância
e júbilo em seus cabelos.

J. Alberto de Oliveira

5.2.08

UM ESTREMECER QUIETO




Ver espelha
o azul e a oferenda.

Abre uma pausa
na lembrança.

Ver
no seu último verso

é um estremecer quieto.

J. Alberto de Oliveira
Fotografia: Ana Afonso

30.1.08

UM ABISMO DE VIDA





Talvez as águas em vertigem
me assinalem o rosto

e os pensamentos

a alma e os sentidos
do corpo todo.

Não olhes nem lhes toques.

É um abismo de vida
o perigo de morte.

J. Alberto de Oliveira

28.1.08

QUASE DE AMOR





Trata-se de um nome
escrito ao frio

muito branco da lua.

Trata-se do esplendor
de geadas e linho puro

num lenço antigo.

Num lenço que dizes
ser quase de amor.

J. Alberto de Oliveira