Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d´aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho,
porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem
ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico
odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não
quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como
pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia
sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o
cuspisse.
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa
vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero
manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
Bernardo Soares/Fernando Pessoa – Livro do Desassossego - 14/01/2013