Perto do fim da sua vida, doente, virtualmente cego, Francisco de Assis escreveu, em louvor a Deus, o "Cantico delle Creature". Redigido numa cabana situada nas proximidades do convento de S. Damião, onde viviam as primeiras clarissas, este texto veio a lume no dialecto da Úmbria, a língua vulgar, do povo, por contraponto ao latim então usado por eruditos e teólogos. Os versos, terminados em 1226, foram publicados no Codex 338 de Assis, um documento no qual, após os versos foi deixado um espaço em branco, um vazio que nunca chegou a receber as notas destinadas a musicar o poema. As palavras de Francisco de Assis, que abraçou o voto de pobreza absoluta como regra de vida, constituem uma espécie de texto panteísta, sendo nele celebrados não só os elementos naturais - o sol, a lua, as estrelas, o vento, a água, o fogo, a terra - mas também "nossa irmã a morte corporal" ("sora nostra morte corporale"), à qual nenhum homem pode escapar. Febril, atormentado por ratos, o Santo, que sempre procurou a negação total de si próprio, quis, mesmo assim, deixar em língua pobre, ainda sem nome, a sua entrega ao silêncio.
Óscar Faria - "Mil Folhas" - 26/01/2007