23.1.19

MARIANA ALCOFORADO





Com a sina maior do amor

a lua
nasce à frente de nós.

Com o fogo de alta dor

a lua
espera atenta lá fora.

J. Alberto de Oliveira

Desenho: Henri Matisse

16.1.19

NOS COMEÇOS DE MIM




Como sucedia a vida nos começos de mim?
Apressada ou demorosa?
Eu sei que só chegava ao meio das palavras
e das coisas mais altas.
Diziam que eu era atento a memórias
e depois fugia para dentro do silêncio.

Os modos de arte eram quase invisíveis.
Mas tinha os sentidos atentos.
Firme no olhar
eu via o mundo sem pertenças.
Bebia da mina da água e comia o pão
a pensar nas aves mais pequenas.

J. Alberto de Oliveira

Desenho: Alberto Péssimo

12.1.19

A ARAGEM DO IMENSO





Ser.
Ser mais é o átimo

do silêncio.

Ser mais
toca na geometria

quasi musical.

O espírito vai aluir
no intenso.

Adivinho a aragem
num fio do imenso.

J. Alberto de Oliveira

28.12.18

CINCO REIS DE AMOR

                                                                                                                                                               Cantico del Sol - Joan Miró




A vida começa por um dedal
de amor coado.

Cinco reis de amor
faz bem a tudo.

O amor na casa.
O amor na rua.
O amor na praça.
O amor no cabo do mundo.

Um dedal de amor coado
faz bem a tudo.

J. Alberto de Oliveira

18.12.18

PARA LUANDINO VIEIRA

                                                                                                                  V. N. de Cerveira










PONTO DE VISTA

Conheço os anjos da guarda.
Pairam no mundo vigilantes, atentos ao que faço,
ao que penso e amo sentidamente.
Os meus anjos da guarda resplendem.
Com a lucidez de espírito, são eles que iluminam a bondade.
Os anjos da guarda ensinam a ver as veredas da liberdade.

J. Alberto de Oliveira



14.12.18

A TEORIA DE VER





Transmite-se a alma de ver
à refulgência de ir indo

pelas arestas do mundo.

Cheios de invisível poeira
da luz afectuosa

ou do sopro sonhado

os olhos em tudo procuram
o lídimo azul da intimidade.

J. Alberto de Oliveira

7.12.18

EXPERIÊNCIA E POEMA





Em conversa comigo
ainda soletro

resumidos versos.

São as inflexões verbais
que me servem

a vida e a sua voz.

Em conversa comigo
estou sempre à espera

da fala aproximativa.

À espera do puro 
sem demora 

ao rés de uma história.



J. Alberto de Oliveira

30.11.18

24.11.18

UM LIVRO BEM SELADO





Quando eu era menino
pela primavera
sabia sempre de um ninho.

Nunca lhe fazia mal
conforme requeria
a moral consolidada.

Agora sei de um livro
bem selado

para não haver fuga
de nenhuma palavra.

É um livro de silêncio
que salva quem

o abrir e ler em poema.

J. Alberto de Oliveira



14.11.18

A TELA SENSÍVEL





Romper a tela
sensível.

Romper a malha
e não ficar.

Rasgar a tela
e passar

através dela.

Romper o tecido
para chegar

ao manancial vivo.


J. Alberto de Oliveira

8.11.18

EM NOVEMBRO




Em Novembro
a desolada cor das folhas
sublinha a mágoa.

Aquela mágoa deixada
pelo silêncio
nas vozes sem regresso.

Em Novembro
parece que tudo se cala

num murmúrio cego.

J. Alberto de Oliveira

30.10.18

MANU SCRIPTA





O AMOR ESCRITO


A língua toda perfumada
no fogo da inocência

e a cor do céu bem medida
pela régua do pensamento

inspiravam o amor escrito.

Entre as varas de luz ditada
e sete riscos de vidro vivo

aprendi a ler cartas seladas.

J. Alberto de Oliveira








27.10.18

O NOME INFINITO




Diz-se dos mortos
que dormem no amor

de seus próprios olhos.

Diz-se que trocaram
o corpo pelo sono

e que seu íntimo sopro
é o nome infinito da paz

a que foram chamados.

J. Alberto de Oliveira

19.10.18

O MARINHEIRO NÃO MENTIA






Por sorte, encontrei um marinheiro
que me contou diversas visões e vivências.
Disse, por exemplo,
que já ninguém leva uma carta fechada
para ser lida no alto mar.
Que os segredos ficam todos em terra
num círculo de silêncio e tristeza até ao regresso.
Que o desejo de partir é igual ao desejo de voltar.
Que todos vão pobres
e todos voltam cheios de mistérios e perguntas.
Disse-me ainda que no alto mar
a cor do tempo umas vezes é salina e azul.
Outras vezes é de névoa profunda.
Que os movimentos da água
esboçam uma beleza antiga.

Pelo que que vim a saber num sonho
que tive

o marinheiro não mentia.

J. Alberto de Oliveira

11.10.18

ACIMA DO QUOTIDIANO




Perdi a lucidez e deixei o sono entrar.
Vi a água em forma de chuva a deslizar pelo seu corpo todo.
Nos movimentos não havia pressa nem temor.
A sua boca tinha a moldura e o tamanho de um segredo.
O lugar da casa parecia minúsculo e propício a não sei quê.
Com a leveza de folha no ar encheu um copo de água.
Sentou-se à minha beira enquanto durou a confidência.
Depois foi-se embora.
Saiu para dar de beber a uma estrela invisível. 
Eu fiquei para saber se ela era uma causa ou efeito da memória. 

J. Alberto de Oliveira


2.10.18

SÃO FRANCISCO DE ASSIS





Há momentos que me fazem pensar. Ao crepúsculo, por exemplo, o corpo, as formas e todas as imagens devagarosamente se perdem esbatidas.
A essa hora ninguém sabe se na alma há lucidez ou sono.
O crepúsculo, a prima hora noctis, convida à nudez.
A paisagem prepara o grande festim onde os seres têm lugar para uma pausa de mansidão.
Dá-se o encontro sem direito nem avesso.

A abertura ao desconhecido e aos segredos do anoitecer é uma vocação íntima.

S. Francisco de Assis morreu em 1226, ao entardecer do dia 3 de Outubro.
Com o seu próprio corpo quis sentir e medir a terra.
Com a nudez estrita se deitou nela.

J. Alberto de Oliveira
Imagem: Amadeo de Souza-Cardoso

24.9.18

A BILHA





Não sei desenhar rostos nem objectos,
apesar de a minha professora das coisas primeiras
nos ensinar a fazer cópias de uma bilha bojuda,
com formas e beleza da ternura.

Hoje, eu daria tudo para ver os meus primeiros exercícios de desenho.
Que me fizeram às cópias da bilha de barro?
Onde anda a bilha bojuda?
E o lápis? Perdeu-se pelos caminhos da escola?

Eu daria tudo para ter aquela bilha de barro e dela beber água pura.
Eu amo a bilha.
Amo-a tanto, que até sei que o amor se faz do mesmo barro 
da bilha que eu desenhava na minha escola antiga.

J. Aberto de Oliveira

18.9.18

UMA ARCA CHEIA





Uma arca cheia de pensamentos,
de enigmas e nomes,
de sinas e lembranças,
de versos à solta,
de rimas
e desassossego sem margens.

Era assim e mais que assim
a arca dos papéis de Fernando Pessoa.

J. Alberto de Oliveira

10.9.18

VERSO A VERSO





A luz de ‘screver o poema
faz-me lembrar

que há degraus para subir
e degraus para descer.





Verso a verso
o poema é breve

para chegar mais depressa.

J. Alberto de Oliveira

6.9.18

LUZ SENSÍVEL





Ando ainda longe de mim
e de quanto me falta escrever

com os olhos no tecto da vida.

À memória quero dar a beber
a luz sensível de Setembro.

Seus frutos maduros são todos
para oferecer 

à sarça ardente do outono.

J. Alberto de Oliveira