4.4.08

A ALMA A PRUMO




Entre os primeiros fios
de sangue e pensamento

ardia a fala da alegria.

Entre o amor no poema
e o fulgor da infância

luzia um verso profundo.

Via-se num filamento
a alma a prumo.

De júbilo era a música.

J. Alberto de Oliveira

Fotografia: Carlos de Oliveira

21.3.08

UM NÚMERO VAGABUNDO




Por sorte em mim o que lês
ao ritmo das coisas nascentes?


Um número vagabundo.


O número ímpar e propício
aos rituais
do vento e da primeira luz.


J. Alberto de Oliveira

17.3.08

MARIA GABRIELA LLANSOL



Maria Gabriela Llansol, que "temia a impostura da língua", tornou-se vulnerável às "sombras do luar libidinal".
Doou-nos o fulgor da textualidade.
Convida-te a seres legente do texto, do "desejo insustentável de eternidade".
M. G. Llansol ensina que "escrever é amplificar pouco a pouco" e que o acto de ler é "uma alma crescendo".

J. Alberto de Oliveira

6.3.08

O VESPERTINO COMEÇO




Com o vespertino começo
de uma luz enlevada

alguém me ensina a ler
a alegria do enamoramento.

No aprumo da claridade
a cadência é mútua.

O ritmo é da intimidade.


J. Alberto de Oliveira






22.2.08

PARA ALÉM DA MARGEM




Os poetas, os santos, os artistas - no seu obstinado desassossego e desejo de perfeição - atingem a consciência, a lucidez sensível e altiva do que são e onde estão:
para além da margem.

J. Alberto de Oliveira

19.2.08

EM SETEMBRO








A mulher que em setembro
corre ao vento pelo mundo

alude o amor e o sangue
de seu maternal aprumo.

Resplendece ao vento
a mulher que em setembro

leva rosas da infância
e júbilo em seus cabelos.

J. Alberto de Oliveira

5.2.08

UM ESTREMECER QUIETO




Ver espelha
o azul e a oferenda.

Abre uma pausa
na lembrança.

Ver
no seu último verso

é um estremecer quieto.

J. Alberto de Oliveira
Fotografia: Ana Afonso

30.1.08

UM ABISMO DE VIDA





Talvez as águas em vertigem
me assinalem o rosto

e os pensamentos

a alma e os sentidos
do corpo todo.

Não olhes nem lhes toques.

É um abismo de vida
o perigo de morte.

J. Alberto de Oliveira

28.1.08

QUASE DE AMOR





Trata-se de um nome
escrito ao frio

muito branco da lua.

Trata-se do esplendor
de geadas e linho puro

num lenço antigo.

Num lenço que dizes
ser quase de amor.

J. Alberto de Oliveira

19.12.07

ROSA RORANS BONITATEM






Stella stilans claritatem,
Rosa rorans bonitatem.


(Brasão de Santa Brígida da Suécia)

17.12.07

OH NOITE SUBLIME





Oh noite sublime
de tão branda

faz de mim uma pausa
ardentemente viva

entre o beijo e a alma.


J. Alberto de Oliveira

30.11.07

NESTE SÍTIO DE SILÊNCIO



Agora
que te surpreendo

e amo
neste sítio de silêncio


um ramo de sol
aviva a nudez da água.

O pão torna-se maior.


E a toalha da mesa
fica muito branca.

Fica toda iluminada.

J. Alberto de Oliveira

15.11.07

UNICUM NECESSARIUM




Quando nasci - e foi o que falaram - eu era o meninopoeta 
que não dizia nem escrevia os versos que em mim havia.

E quando vier a hora incerta
do obscuro nó de tudo

seja eu ainda poetamenino.

Sejam de asa ou de névoa 
os últimos versos da minha língua.

J. Alberto de Oliveira

3.11.07

SOPRO A SOPRO





Rendo-me à evidência
das letras e palavras

em que sopro 
a sopro me escrevo.

À margem do mundo
aida respiro

quase absorto
altivo e profundo.

J. Alberto de Oliveira

15.9.07

O SÉTIMO SELO




Amada como um sonho
a rosa


é o sétimo selo.

A matéria luminosa
da primeira 


lembrança de Deus.

J. Alberto de Oliveira

NO SILÊNCIO DO VIDRO




Entre duas sílabas
o amor

e o indizível estremecem.

Há um fulgor
tangivelmente sentido

no silêncio do vidro.


J. Alberto de Oliveira

27.7.07

A OBRA QUE SE ESBOÇA




A lua no mar
e a noite que se demora

furtivamente são 

o desenho e a casa.

A obra que se esboça
na palma da tua mão.


J. Alberto de Oliveira

19.7.07

A REFLEXA LUZ


Ao meu Pai que me ensinou a olhar, a ver e a ser para lá da luz do horizonte

Aqui entre a poeira
do mundo

uma névoa de vento
cintila
e te perpetua em paz.

Aqui a reflexa luz
de que vivias
fez-se névoa de asas.


J. Alberto de Oliveira

13.7.07

O ORVALHO DO NOME

Fotografia: J. A. de Oliveira



Quando chegar a casa
no sítio onde moras

quero ainda ver o linho
todo em flor.

Quero ver no linho
o orvalho do nome

que perdi à tua porta.

J. Alberto de Oliveira

9.7.07

O LUXO DE SER

Fotografia: J. A. de Oliveira



Contenta-me ser banido 
pelos trôpegos da palavra 

pelos inestéticos da vida
pelos duros de coração

pelos fiéis da ganância
pelos imbecis da alma.

J. Alberto de Oliveira

5.7.07

PERDIDAMENTE FLORBELA



Do primeiro ao último verso
a tua voz
alude à sede suprema.

Responde às promessas
de que tão perdidamente viveste.

J. Alberto de Oliveira

29.6.07

PIER PAOLO PASOLINI





Per essere poeti, bisogna avere molto tempo:
ore e ore di solitudine sono il sono modo
perchè si forma qualcosa, che è forza, abbandono,
vizio, libertà, per dare stile al caos.
Io tempo ormai ne ho poco...

Pier Paolo Pasolini

AO VIR DA MADRUGADA

Fotografia: J. A. de Oliveira



Ao vir da madrugada
o pensamento do amigo

ilumina-se de orvalho.

Luzem versos  
por onde passa a vinda.

Ao vir da madrugada

o pensamento do amigo
torna-se muito leve

junto à porta da amada.

J. Alberto de Oliveira

22.6.07

SETE GOTAS

Fotografia: J. A. de Oliveira



Ao cego e silencioso 
infinito do sono

abre-se o luzir
das primeiras gotas

dadas à noite
propícia ao relento.

É o luzir de sete gotas
de sangue e perfume

de puro enamoramento.

J. Alberto de Oliveira





10.5.07

SPREZZATURA



Joy, largueza, proeza - são cânones da cortesia provençal que informaram toda a juventude de Francisco de Assis. Os seus companheiros recordavam-no "pródigo e cauto mercador, mas magnificentíssimo, altivo e generoso, ligeiro e não pouco audaz, superior em grandeza de alma, rico em liberalidade".
No sonho da conversão viu unicamente símbolos cavaleirescos.
Convertido, reclamando-lhe o pai os seus haveres e citado perante o bispo, efectuou uma sprezzatura deslumbrante, despindo-se até ficar nu em pleno episcopado e atirando as roupas para o chão. (O bispo agiu admiravelmente a condizer, cobrindo-o com o seu próprio manto).

Cristina Campo - Os imperdoáveis

15.3.07

O CÂNTICO DOS CÂNTICOS

Fotofrafia: J. A. de Oliveira






O Cântico dos Cânticos é um belíssimo poema a iluminar a palavra Amor. É uma vitória dos que amam, tendo como alicerce as forças mais vivas da natureza.
Será possível um grande amor sem a terra fecunda, sem as águas correntes, o sol, as flores, o vento?
Os animais e as plantas rejubilam com o amor do homem e da mulher.
Dir-se-ia que o o Cântico Maior, também assim dito, subtilmente revela que o amor nos humanos move-se do lado do amor de Deus.
É o cântico de núpcias da Criação!
É uma outra forma de exprimir o indizível, o espaço onde a mulher surge primeiro e se movimenta, como quem procura uma alegria perfeita.
Melhor que o homem a mulher sabe do essencial.

J. Alberto de Oliveira

21.2.07

SE VIVO AMOR NOS MOVE




Se vivo amor nos move
que delicado verso

ou palavra amada
em nós começa

em nós se demora

e depois
com sentido pudor

no mar adormece?

J. Alberto de Oliveira

10.2.07

TE DEUM



                                         para Cerqueira Gonçalves

Louvai e bendizei o Amor no Verbo!
Louvai o Eterno
vós, legentes do Poema!

Vós, que ledes, em seus versos

outros versos, outras palavras,
outras sílabas e letras
subtis, amantes do mistério!

J. Alberto de Oliveira

31.1.07

NO DIALECTO DA ÚMBRIA

Fotografia: J. A. de Oliveira



Perto do fim da sua vida, doente, virtualmente cego, Francisco de Assis escreveu, em louvor a Deus, o "Cantico delle Creature". Redigido numa cabana situada nas proximidades do convento de S. Damião, onde viviam as primeiras clarissas, este texto veio a lume no dialecto da Úmbria, a língua vulgar, do povo, por contraponto ao latim então usado por eruditos e teólogos. Os versos, terminados em 1226, foram publicados no Codex 338 de Assis, um documento no qual, após os versos foi deixado um espaço em branco, um vazio que nunca chegou a receber as notas destinadas a musicar o poema. As palavras de Francisco de Assis, que abraçou o voto de pobreza absoluta como regra de vida, constituem uma espécie de texto panteísta, sendo nele celebrados não só os elementos naturais - o sol, a lua, as estrelas, o vento, a água, o fogo, a terra - mas também "nossa irmã a morte corporal" ("sora nostra morte corporale"), à qual nenhum homem pode escapar. Febril, atormentado por ratos, o Santo, que sempre procurou a negação total de si próprio, quis, mesmo assim, deixar em língua pobre, ainda sem nome, a sua entrega ao silêncio.

Óscar Faria - "Mil Folhas" - 26/01/2007


23.1.07

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

Fotografia: J. A. de Oliveira


O pórtico da poesia de Fiama:

Água significa ave.

A fala de Fiama Hasse Pais Brandão é um todo coroado pelos seus últimos versos escritos junto ao mar do Algarve:

MEIO DIA / MEU DIA

Na pele sinto o percurso das ondas,
mais amplo e intenso do que o périplo do sol.
E, no entanto, este vai-se gerando a si mesmo,
a cada momento, até à placidez
do meio-dia. São feitos de horas, contínuas, eternas,
aqui, na ria, os dias. Hoje,
meu dia, o coração e o dia rejubilam.

10.1.07

MATÉRIA LUMINOSA

Fotografia: J. A. de Oliveira




Há um movimento cego
da mão
que principia no fogo.

Serve-se da matéria
luminosa da boca

para transmitir ao vidro
a perfeição 
da sede que nos respira.

J. Alberto de Oliveira

12.12.06

A LÍDIMA COR



Espero do silêncio
a lídima cor da púrpura.

A púrpura molhada
pelo ouro da plenitude.

O ouro verbal das aves.

J. Alberto de Oliveira

11.12.06

LAUDATO SI', MI' SIGNORE!




(...)

Laudato si', mi' Signore, per frate vento
et per aere et nubilo et sereno et onne tempo,
per lo quale a le tue creature dai sustentamento.

Laudato si', mi' Signore, per sora aqua,
la quale è multo utile et humile
et pretiosa et casta.

(...)

S. Francisco de Assis - "Cantico delle Criature"

26.11.06

A VOCAÇÃO DA CALIGRAFIA

Fotografia: Carlos de Oliveira



Podes ficar no segredo
ou ser apenas a vocação

mais íntima da caligrafia.

Na razão de te ler
sublime é a melancolia.

J. Alberto de Oliveira

15.11.06

A PÚRPURA E O AZUL



A púrpura e o azul
a despir os ombros.

A alma e sua leveza
a iluminar os dedos.

E de súbito no pulso
o bater luzente do nome.

O movimento jubiloso 
do lume carnal no pulso.

J. Alberto de Oliveira

10.11.06

O POETA DELIRA



A poesia é uma espécie de língua estrangeira, porque o poeta delira quando escreve.
Será tanto assim?
A resposta vem de Gilles Deleuze:
"L'écrivain, comme dit Proust, invente dans la langue une nouvelle langue, une langue étrangère en quelque sorte. Il met à jour de nouvelles puissances grammaticalles ou syntaxiques. Il entraîne la langue hors de ses sillons coutumiers, il se fait délirer".

UMA LUZ ABSTRACTA




Era uma luz abstracta
quase de perfume.


Era uma rosa intacta
demoradamente nua.

J. Alberto de Oliveira

9.11.06

IR CONTIGO A DELFOS




Ir contigo a Delfos
seria um dia beber

a água viva e jubilosa.

Seria ouvir-te na frase
mais alta da sede.


J. Alberto de Oliveira

4.11.06

POESIA E MISTÉRIO



Há um domínio da poesia que tem que ver com uma relação com o mistério, com o desconhecido, com aquilo que, do mundo, em nós, nós não compreendemos bem. Aquilo que não conhecemos, mas que reconhecemos como sendo qualquer coisa que já antes existia em nós. Há uma forma de reconhecimento, na poesia, que tem que ver com o mistério.

Manuel António Pina - LER, nº68

COM PALAVRAS


Conta-se que o poeta francês Stéphane Mallarmé terá visitado o pintor Degas no seu atelier e que o pintor lhe disse:
- Oh, caro Mallarmé, tenho ideias fántásticas para poemas, se tivesse o seu talento...
E o poeta respondeu-lhe:
- Meu caro Degas, a poesia não se escreve com ideias, é com palavras.

28.10.06

A QUEIMADURA CELESTE



Em si mesma, para cada um de nós, no momento em que nos toca, como se fosse o dedo de Deus, a poesia esconde-nos da morte. 
É o único céu portátil de que estamos certos. 
Um céu de palavras, que de século em século se comunicam, a queimadura celeste que a vida deixou nos nossos vulneráveis corações. 

Eduardo Lourenço

2.10.06

ACERCA DE "O SOM APROXIMATIVO"



J. Alberto de Oliveira publica o seu primeiro livro nos anos 70. Agora O Som Aproximativo, que é o seu quarto livro, retoma uma poesia que se caracteriza também pela depuração:

O âmago do silêncio
não o dês ao mundo.


Não o desvies da pura
vivência
que se designa


como doçura
o doer íntimo da luz.

De novo a palavra lirismo pode ser invocada para caracterizar uma poesia que "surpreende o vazio" das coisas, "procura a noite dentro do sono", "transfigura as horas e sua poesia" ou fala dos "altos umbrais da poesia".

Fernando Guimarães, in "Crónica de Poesia", JL - 12/09/ 2006

15.9.06

A ÚLTIMA CASA DO MAR






                                                                 para Mário B.

Não era uma fonte enlevada
nem o cristal do silêncio.

Seria talvez
num poema breve

a última casa do mar.

A casa da transparência
onde moras

sem tempo
nem solidão nas palavras.


J. Alberto de Oliveira

14.9.06

ABISMO - Luísa Neto Jorge





Um dia acorda-se e o abismo é berço,
e o diabo mais do que irmão.
Todo o desvio tem seu preço.

Luísa Neto Jorge

8.7.06

O PRIMEIRO ACTO LIVRE


(...) a liberdade deve estar em qualquer parte, e o primeiro acto livre que encontrei foi o da escrita. Só depois procurei a música. Toda ela é um amor interior que ainda não fala. Quem a recebe à porta, é quem o diz. Ela sai e entra, penetra no corpo, transforma-o em pregas de muda dimensão. Muda, por agora. Porque presumo que há-de ensinar-me o dobro das palavras que eu sei.

Maria Gabriela Llansol - AMIGO E AMIGA - Curso de silêncio 2004

26.6.06

O SILÊNCIO DA ACRÓPOLE



Quando entrei pela primeira vez na Capela Sistina o barulho era tanto que não podia ver. Bandos de turistas conduzidos por guias erravam num desvairo de babilónia. Falavam todos ao mesmo tempo nas suas diversas línguas, vozeavam como um enxame, e o alto movimento dos Ignudi perdia-se na sua desordem. Tudo estava desfocado.
Verdadeiramente não vi a Capela Sistina nessa primeira visita. Porque uma obra de arte tem de ser vista naquele vazio e naquele silêncio onde o artista se colocou para a criar. Tem de ser vista numa situação pura. Se para tantos homens a arte perdeu a significação, é porque antes disso eles perderam em si mesmos o seu próprio espaço interior, a disponibilidade vazia, a lisura do silêncio. Como turistas trazem consigo o seu barulho e a sua agitação opaca, que em tudo implantam, e não há guia, nem professor de estética, nem crítico de arte que os possa salvar da sua errância estéril.

O barulho da Capela Sistina doeu-me tanto mais porque ali me lembrei dos templos gregos, quebrados e arruinados, mas conservando inteiro o seu halo de silêncio.
Foi ao meio-dia que subi pela primeira vez à Acrópole. Um meio-dia frontal, um meio-dia total, sem uma falha. Mas atento e subtil, radioso de espanto. O sol poisava as suas mãos sobre os meus ombros. Subi as escadas e atravessei os Propileus. O silêncio reinava, inteiro, sagrado. Um silêncio incorruptível, que da voz da cigarra ou do rolar da pequena pedra solta sob o passo do homem fazia um elemento do silêncio.
Nenhuma descrição de viajante, nenhum livro de arte podia fazer prever este silêncio: só a experiência do nosso próprio tempo interior. E também os grandes planos de silêncio que suportam o discurso nas tragédias de Ésquilo. Ou o silêncio que na língua grega se cava entre as sílabas das palavras.
À direita o templo de Atena Niké avança como uma proa no espaço aberto e deslumbrado. No lado norte, no lugar mais sagrado da Acrópole, a forma desdobrada e dupla do Erectéion. Olho-o sentada num degrau do Partenon, rente a uma coluna. Do outro lado da coluna está sentada uma rapariga, calada e quieta e atenta.
Meio-dia frontal, quase sem nenhuma sombra. As sombras recuavam sob a raiz das colunas. A nudez brilhava, interior ao branco. O ar era ágil e grave. Veemência e solenidade, paixão e repouso.
A Acrópole que vi não era a Acrópole dos turistas. Aliás, àquela hora, sob o sol a pino, os turistas eram raros. E não vinham em grupo e não traziam guia. Não eram turistas. Não havia neles nem a curiosidade nem a agitação de quem é, como turista, exterior ao que vê. Era gente que viera de longe em busca de um lugar longamente amado, desejado, imaginado. Gente que viera para ser medida, para confrontar com a verdade dum lugar a própria verdade do seu ser.
E sei que não vi a Acrópole de Péricles. Os degraus estão quebrados, as colunas derrubadas, a pintura apagou-se, não há procissões nem sacerdotes, as celas estão vazias, o bronze foi fundido, as métopas, os frontões e os frisos estão dispersos pelos museus do Mundo.
Mas não foi a Acrópole de Péricles nem a de Pisistrato que vim procurar. Não imagino a estátua de Atena Promachos nem a chegada dos persas. Imagino exactamente o que vejo. Na minha imaginação não há nenhuma “Son et lumière”. Não procuro recuo no tempo. Não vim aqui por motivos turísticos. Não tenho curiosidade. E também não vim aqui por motivos de cultura. Não sou arqueólogo. Não vim para saber onde era tecido o véu de Atena nem para identificar o percurso das Panateias. Não vim estudar uma civilização morta. Não vim celebrar o passado. O que está aqui não é passado, é a minha vida, a minha busca. O que está aqui é actual porque é lição do ser. E mais uma vez reconheço que só a arte é didáctica, que só ela me ensina o que só nos termos pode ser ensinado.
Pois é como se a grande mão do sol nos tivesse lavado de todo acidente e de toda a contingência e tivéssemos regressado a uma situação pura. E as palavras que sobem no meu pensamento são as palavras de Parménides de Eleia:
“O ser também não é divisível, pois ele é todo inteiro, idêntico a si mesmo; não sofre nem acrescenta, o que seria contrário à sua coesão, nem diminuição, mas está todo inteiro, ocupado pelo ser; por isso, é inteiramente contínuo, pois o ser é contínuo ao ser”.
Na plenitude do meio-dia as colunas parecem imanentes à luz. O tempo devorou as procissões e os ritos e apagou a tinta das pinturas. Mas na Acrópole saqueada e quebrada permanecem inteira a proporção exacta, a solenidade da atenção, a busca apaixonada, a escrita do ser. Implantadas no sol e no silêncio.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(Texto encontrado num recorte do “Diário Popular” de 21/03/1968)

21.6.06

A CHUVA



Ouve a chuva
nas folhas húmidas.

Será tanto assim
o canto antigo

de beijos
noutros beijos?

José Alberto de Oliveira
("Alegria Irrecusável" - 1974)

20.6.06

DE FOLHA PERFUMADA



De folha perfumada
te quero
nos sentidos do vento.

Manancial de linho aberto
e suspenso dos ombros.

Linho feito de palavras
atentas
ao amor que vem de Setembro.


J. Alberto de Oliveira